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O fascínio da incerteza

Em Ideias Recebidas sobre as Grandes Descobertas, dois historiadores franceses duvidam de tudo – ou quase tudo – sobre as navegações que moldaram os contornos da Terra

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Por Gilles Lapouge

Todos os alunos de escola primária em todo o mundo criam a imagem do seu próprio país com ajuda de algumas historietas, réplicas ou cenas emblemáticas. No caso da França, a mulher do rei Luís XVI, a rainha Maria Antonieta, que a Revolução de 1789 cortou o pescoço, teria exclamado, diante dos tumultos populares causados pela fome: “Se eles não têm pão, que comam brioches!”. Ou na Idade Média, o rei São Luis exercia sua função de juiz sob um carvalho. O Brasil também tem suas imagens: Tiradentes e seu esquartejamento, o grito do Ipiranga dado pelo príncipe regente em 1822: “Independência ou Morte”.

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São cenas belas. Às vezes verdadeiras, outras vezes imaginárias. Dois historiadores, Michel Chandeigne e Jean-Paul Duviols, fazem uma releitura das Grandes Descobertas, procurando separar o que é verdadeiro, falso e fantástico. Todo mundo sabe que a epopeia lusitana foi preparada pelo Infante D. Henrique (1394-1460), que criou com seu irmão Pedro uma escola em Sagres, no Algarve, uma fabulosa academia científica que permitiu o formidável avanço lusitano: Ceuta e Marrocos em 1415, Sierra Leone em 1460 e depois o oceano, chegando à Índia e ao Brasil. Filmes nos mostraram essa escola de Sagres, que nos deixou boquiabertos. Uma Nasa da Renascença! O problema, afirma Chandeigne, é que “essa escola é pura invenção”.

O infante D. Henrique residia em Lisboa, não em Sagres, e às vezes em sua propriedade de Covilhã, no centro de Portugal. Até 1460 todos os navios de exploração partiam de Lisboa ou Lagos. Mas é verdade que em seus últimos anos de vida Henrique passou no Algarve, onde morreu em 1460. Essa morte, diante do oceano grandioso, assombroso e subjugado, estabeleceu as primeiras bases do que se tornou uma lenda.

As imaginações voam. Cronistas descrevem um espaço repleto de mapas e astrolábios, um Infante cercado de um exército de sábios, cosmógrafos e astrólogos. Henrique é um grande matemático. Lê o tempo todo, mas alguns livros só serão publicados após sua morte. No século 19, os românticos adoravam esse príncipe e foram eles que em 1847 o apelidaram de “Navegador”.

A figura quase divina de Henrique atinge seu apogeu com o presidente Antonio de Oliveira Salazar. Os dois homens são parecidos. Salazar atacou os bolcheviques como Henrique atacou os árabes. Antonio Ferro, secretário da propaganda nacional, escreveu em 1933: “Salazar é a personalidade portuguesa que mais se aproxima de do Infante D. Henrique, o Navegador. Simplesmente, os tempos não são mais os mesmos. As ‘caravelas’ hoje são transatlânticos, pontes, escolas, portos, cidades operárias”.

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Por que as caravelas? O fato é que elas não só foram projetadas e calculadas pela escola de Sagres, como pretende a leda, mas também teriam sido o “barco das Grandes Descobertas” na África, Índia e América. Bom, Chandeigne e Duviols protestam. Discordam. “Na costa africana a caravela só surgiu em 1640. Uma construção de 15 a 20 metros, de apenas 50 toneladas, munida de um, dois, até três mastros, cada um com uma vela triangular. Tinha uma única ponte superior, onde se apertavam 30 a 50 pessoas. Suas amplas velas lhe permitia navegar contra o vento e portanto explorar a costa africana até o cabo de Boa Esperança, onde essa caravela teve um papel preponderante. Mas depois surgiu um outro tipo de navio, a nau.”

A nau tinha uma tonelagem muito maior, era mais redonda, com duas ou três pontes rolantes para transportar víveres, artilharia pesada, mercadorias para trocar. Com suas inúmeras velas quadradas, navegava com vento de popa. Mas não importa, porque nessa época o regime dos ventos atlânticos era bem conhecido e Vasco da Gama, em vez de viajar ao longo da costa africana como Bartolomeu Dias, se lançou no Atlântico sul para realizar um longo círculo que lhe permitiu navegar constantemente com o vento de popa.

E Cristóvão Colombo? E as caravelas? Bem, “o navio chefe, o Santa Maria, ao que parece era uma nau, uma vez que o próprio navegador dezenas de vezes o nomeou de “nau capitânia”. A reconstituição do navio que pode ser vista em Sevilha é um barco cujas velas principais são quadradas, com o mastro na popa portando uma pequena vela triangular. “Na rota das Índias Ocidentais ou Orientais, as modestas caravelas latinas definitivamente deram lugar às naus e galeões. Mas o termo caravela perdura até nossos dias, em detrimento dos outros, para designar qualquer navio à época das Grandes Descobertas. O sucesso da palavra se deve sem dúvida à sua elegância sonora e à força da evocação das suas sílabas. Nau, termo opaco e muito curto, parece reservado aos tratados náuticos e aos livros de história”, detalha Chandeigne.

O historiador em seguida se detém em Vasco da Gama. Pobre Vasco! Segundo o autor, é um homem envelhecido, sujo, esfarrapado. Sua primeira viagem não tem o sabor daquelas empreendidas por Colombo ou Fernão de Magalhães. Contrariamente a estes últimos, que partiram para o desconhecido, o caminho seguido por Vasco da Gama já fora sinalizado. Bartolomeu Dias havia dobrado o cabo da Boa Esperança em 1488.

As crônicas apresentam Vasco da Gama como um homem arrogante, brutal, paranoico, obtuso, pouco corajoso, avarento. “Seu espírito grosseiro não tinha a grandeza de um homem de Estado. Ele aterrorizou a Índia diante da crueldade de suas façanhas”, disse o grande historiador luso Oliveira Martins (1845-1894). Sua ferocidade é de causar asco. Em Calicute, Vasco da Gama bombardeou a cidade, enforcou os reféns, cortou suas mãos e pés e lançou os cadáveres mutilados no mar.

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Nada de comparável com o que ocorreria na Índia alguns anos mais tarde. Afonso de Albuquerque (1453-1515), vice-rei e governador da Índia portuguesa, que defendia os casamentos mistos, criou uma sociedade indo-lusitana, construiu fortalezas que permitiram aos portugueses pouco numerosos se manterem ali. Ormuz permanecerá lusitana até 1622, Malaca até 1640, Goa foi capital das Índias portuguesas de 1530 a 1961. “Essa foi obra de um homem praticamente só. Ele estabeleceria os alicerces do Império português em seis anos, com algumas centenas de homens”. Albuquerque também usou da violência, mas foi um visionário, um homem desinteressado, íntegro, leal a seu rei e soube compreender a complexidade do Oriente.”

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Conclusão: Albuquerque foi a grande figura, muito melhor do que Vasco da Gama. “A Índia era uma loucura”, disse Oliveira Martins. “Somente gênios como Albuquerque dariam grandeza a um projeto condenado. Somente um santo como João de Castro (que se tornou governador alguns anos depois) conseguiria salvar a honra portuguesa da vergonha de uma ignomínia manifesta.”

Chandeigne e Duviols são historiadores incansáveis. E criticam uma outra ideia equivocada: “Segundo alguns, os portugueses praticavam uma política rigorosa do segredo, ocultando os avanços das suas navegações. Isso é falso”. E citam um texto recente sobre o assunto: “O grande país viajante dessa época fez da mentira uma norma e um dever. Portugal ordena a seus marinheiros e capitães que dissimulem tudo o que virem. Uma palavra justifica essa obrigação: sigilo, que significa também segredo. Ao instituir o sigilo, Portugal das Grandes Descobertas fez da trapaça uma virtude”.

Este texto, que Chandeigne critica, fui eu, Gilles Lapouge, que escrevi. Fico um pouco constrangido. Admiro Chandeigne. Como não sou historiador, me curvo, mas não sem lembrar que o tema (ou mito) do sigilo não foi inventado por mim. Eu o encontrei junto ao português Jaime Cortesão e outros. Mas o raciocínio de Chandeigne é sólido, mesmo que existam algumas incongruências, como por exemplo o célebre mapa-múndi português de 1501-1502 que nos deixa com uma pulga na orelha. Contudo, respeito muito a Universidade e seus mestres para perseverar na minha tolice.

E me justifico mudando de assunto e colocando o Sigilo sob o signo da literatura, da poesia. Para mim, o sigilo provém de uma visão metafísica. Em Lisboa, ao tempo das Descobertas, algumas pessoas asseguravam que todos os mapas da marinha disponíveis eram falsos. Havia um mapa verdadeiro, absoluto, o chamado “padrão real”, fechado a sete chaves em uma fortaleza em Lisboa. Somente o rei possuía as chaves preciosas e podia consultar esse mapa. O rei e, claro, o bom Deus, senhor da geografia, dos mares e das fronteiras. Os contornos da Terra só eram conhecidos por Deus. E como, na Terra, o rei era o representante de Deus, ele detinha as chaves do “padrão real”. Em compensação todos os outros mapas, mesmo aqueles dos capitães portugueses, eram falsos.

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Suponho que esta outra versão do sigilo não passará pelo crivo racional e meticuloso de Chandeigne e Duviols. Pior para mim. E para eles também. Porque meu mapa absoluto, meu padrão real, que somente Deus e o Rei têm a capacidade de ler, ao passo que todos os outros mapas-múndi foram elaborados por cegos, eu confiarei ao grande Jorge Luis Borges. Tenho certeza que o gênio argentino não encontrará nada a desdizer, mas aproveitará para escrever, desde que tenha um pouco de tempo livre no seu Paraíso, um conto tão belo, tão misterioso e tão límpido como A Biblioteca de Babel.

Retornemos ao livro Ideias Recebidas Sobre as Grandes Descobertas. Ele contém muitos outros enfoques, sobre Cristóvão Colombo, Cortez, Magalhães. Mas os dois autores às vezes omitem algumas outras histórias bizarras. Por exemplo, a do navegador francês que partiu do porto de Honfleur, na Normandia, Binot Paulmier de Gonneville. Ele teria estado no Brasil em 1604, feito amizade com os índios carijós e levado para a França o filho do rei Arosca, o jovem Essomeric, que se casou na França e cujo bisneto teria sido cônego na corte do rei Luís XIV. Uma aventura sedutora.

Quanto a mim, o que me fascina na História são suas incertezas, seus sobressaltos. Suas sombras. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Todos os alunos de escola primária em todo o mundo criam a imagem do seu próprio país com ajuda de algumas historietas, réplicas ou cenas emblemáticas. No caso da França, a mulher do rei Luís XVI, a rainha Maria Antonieta, que a Revolução de 1789 cortou o pescoço, teria exclamado, diante dos tumultos populares causados pela fome: “Se eles não têm pão, que comam brioches!”. Ou na Idade Média, o rei São Luis exercia sua função de juiz sob um carvalho. O Brasil também tem suas imagens: Tiradentes e seu esquartejamento, o grito do Ipiranga dado pelo príncipe regente em 1822: “Independência ou Morte”.

São cenas belas. Às vezes verdadeiras, outras vezes imaginárias. Dois historiadores, Michel Chandeigne e Jean-Paul Duviols, fazem uma releitura das Grandes Descobertas, procurando separar o que é verdadeiro, falso e fantástico. Todo mundo sabe que a epopeia lusitana foi preparada pelo Infante D. Henrique (1394-1460), que criou com seu irmão Pedro uma escola em Sagres, no Algarve, uma fabulosa academia científica que permitiu o formidável avanço lusitano: Ceuta e Marrocos em 1415, Sierra Leone em 1460 e depois o oceano, chegando à Índia e ao Brasil. Filmes nos mostraram essa escola de Sagres, que nos deixou boquiabertos. Uma Nasa da Renascença! O problema, afirma Chandeigne, é que “essa escola é pura invenção”.

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O infante D. Henrique residia em Lisboa, não em Sagres, e às vezes em sua propriedade de Covilhã, no centro de Portugal. Até 1460 todos os navios de exploração partiam de Lisboa ou Lagos. Mas é verdade que em seus últimos anos de vida Henrique passou no Algarve, onde morreu em 1460. Essa morte, diante do oceano grandioso, assombroso e subjugado, estabeleceu as primeiras bases do que se tornou uma lenda.

As imaginações voam. Cronistas descrevem um espaço repleto de mapas e astrolábios, um Infante cercado de um exército de sábios, cosmógrafos e astrólogos. Henrique é um grande matemático. Lê o tempo todo, mas alguns livros só serão publicados após sua morte. No século 19, os românticos adoravam esse príncipe e foram eles que em 1847 o apelidaram de “Navegador”.

A figura quase divina de Henrique atinge seu apogeu com o presidente Antonio de Oliveira Salazar. Os dois homens são parecidos. Salazar atacou os bolcheviques como Henrique atacou os árabes. Antonio Ferro, secretário da propaganda nacional, escreveu em 1933: “Salazar é a personalidade portuguesa que mais se aproxima de do Infante D. Henrique, o Navegador. Simplesmente, os tempos não são mais os mesmos. As ‘caravelas’ hoje são transatlânticos, pontes, escolas, portos, cidades operárias”.

Por que as caravelas? O fato é que elas não só foram projetadas e calculadas pela escola de Sagres, como pretende a leda, mas também teriam sido o “barco das Grandes Descobertas” na África, Índia e América. Bom, Chandeigne e Duviols protestam. Discordam. “Na costa africana a caravela só surgiu em 1640. Uma construção de 15 a 20 metros, de apenas 50 toneladas, munida de um, dois, até três mastros, cada um com uma vela triangular. Tinha uma única ponte superior, onde se apertavam 30 a 50 pessoas. Suas amplas velas lhe permitia navegar contra o vento e portanto explorar a costa africana até o cabo de Boa Esperança, onde essa caravela teve um papel preponderante. Mas depois surgiu um outro tipo de navio, a nau.”

A nau tinha uma tonelagem muito maior, era mais redonda, com duas ou três pontes rolantes para transportar víveres, artilharia pesada, mercadorias para trocar. Com suas inúmeras velas quadradas, navegava com vento de popa. Mas não importa, porque nessa época o regime dos ventos atlânticos era bem conhecido e Vasco da Gama, em vez de viajar ao longo da costa africana como Bartolomeu Dias, se lançou no Atlântico sul para realizar um longo círculo que lhe permitiu navegar constantemente com o vento de popa.

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E Cristóvão Colombo? E as caravelas? Bem, “o navio chefe, o Santa Maria, ao que parece era uma nau, uma vez que o próprio navegador dezenas de vezes o nomeou de “nau capitânia”. A reconstituição do navio que pode ser vista em Sevilha é um barco cujas velas principais são quadradas, com o mastro na popa portando uma pequena vela triangular. “Na rota das Índias Ocidentais ou Orientais, as modestas caravelas latinas definitivamente deram lugar às naus e galeões. Mas o termo caravela perdura até nossos dias, em detrimento dos outros, para designar qualquer navio à época das Grandes Descobertas. O sucesso da palavra se deve sem dúvida à sua elegância sonora e à força da evocação das suas sílabas. Nau, termo opaco e muito curto, parece reservado aos tratados náuticos e aos livros de história”, detalha Chandeigne.

O historiador em seguida se detém em Vasco da Gama. Pobre Vasco! Segundo o autor, é um homem envelhecido, sujo, esfarrapado. Sua primeira viagem não tem o sabor daquelas empreendidas por Colombo ou Fernão de Magalhães. Contrariamente a estes últimos, que partiram para o desconhecido, o caminho seguido por Vasco da Gama já fora sinalizado. Bartolomeu Dias havia dobrado o cabo da Boa Esperança em 1488.

As crônicas apresentam Vasco da Gama como um homem arrogante, brutal, paranoico, obtuso, pouco corajoso, avarento. “Seu espírito grosseiro não tinha a grandeza de um homem de Estado. Ele aterrorizou a Índia diante da crueldade de suas façanhas”, disse o grande historiador luso Oliveira Martins (1845-1894). Sua ferocidade é de causar asco. Em Calicute, Vasco da Gama bombardeou a cidade, enforcou os reféns, cortou suas mãos e pés e lançou os cadáveres mutilados no mar.

Nada de comparável com o que ocorreria na Índia alguns anos mais tarde. Afonso de Albuquerque (1453-1515), vice-rei e governador da Índia portuguesa, que defendia os casamentos mistos, criou uma sociedade indo-lusitana, construiu fortalezas que permitiram aos portugueses pouco numerosos se manterem ali. Ormuz permanecerá lusitana até 1622, Malaca até 1640, Goa foi capital das Índias portuguesas de 1530 a 1961. “Essa foi obra de um homem praticamente só. Ele estabeleceria os alicerces do Império português em seis anos, com algumas centenas de homens”. Albuquerque também usou da violência, mas foi um visionário, um homem desinteressado, íntegro, leal a seu rei e soube compreender a complexidade do Oriente.”

Conclusão: Albuquerque foi a grande figura, muito melhor do que Vasco da Gama. “A Índia era uma loucura”, disse Oliveira Martins. “Somente gênios como Albuquerque dariam grandeza a um projeto condenado. Somente um santo como João de Castro (que se tornou governador alguns anos depois) conseguiria salvar a honra portuguesa da vergonha de uma ignomínia manifesta.”

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Chandeigne e Duviols são historiadores incansáveis. E criticam uma outra ideia equivocada: “Segundo alguns, os portugueses praticavam uma política rigorosa do segredo, ocultando os avanços das suas navegações. Isso é falso”. E citam um texto recente sobre o assunto: “O grande país viajante dessa época fez da mentira uma norma e um dever. Portugal ordena a seus marinheiros e capitães que dissimulem tudo o que virem. Uma palavra justifica essa obrigação: sigilo, que significa também segredo. Ao instituir o sigilo, Portugal das Grandes Descobertas fez da trapaça uma virtude”.

Este texto, que Chandeigne critica, fui eu, Gilles Lapouge, que escrevi. Fico um pouco constrangido. Admiro Chandeigne. Como não sou historiador, me curvo, mas não sem lembrar que o tema (ou mito) do sigilo não foi inventado por mim. Eu o encontrei junto ao português Jaime Cortesão e outros. Mas o raciocínio de Chandeigne é sólido, mesmo que existam algumas incongruências, como por exemplo o célebre mapa-múndi português de 1501-1502 que nos deixa com uma pulga na orelha. Contudo, respeito muito a Universidade e seus mestres para perseverar na minha tolice.

E me justifico mudando de assunto e colocando o Sigilo sob o signo da literatura, da poesia. Para mim, o sigilo provém de uma visão metafísica. Em Lisboa, ao tempo das Descobertas, algumas pessoas asseguravam que todos os mapas da marinha disponíveis eram falsos. Havia um mapa verdadeiro, absoluto, o chamado “padrão real”, fechado a sete chaves em uma fortaleza em Lisboa. Somente o rei possuía as chaves preciosas e podia consultar esse mapa. O rei e, claro, o bom Deus, senhor da geografia, dos mares e das fronteiras. Os contornos da Terra só eram conhecidos por Deus. E como, na Terra, o rei era o representante de Deus, ele detinha as chaves do “padrão real”. Em compensação todos os outros mapas, mesmo aqueles dos capitães portugueses, eram falsos.

Suponho que esta outra versão do sigilo não passará pelo crivo racional e meticuloso de Chandeigne e Duviols. Pior para mim. E para eles também. Porque meu mapa absoluto, meu padrão real, que somente Deus e o Rei têm a capacidade de ler, ao passo que todos os outros mapas-múndi foram elaborados por cegos, eu confiarei ao grande Jorge Luis Borges. Tenho certeza que o gênio argentino não encontrará nada a desdizer, mas aproveitará para escrever, desde que tenha um pouco de tempo livre no seu Paraíso, um conto tão belo, tão misterioso e tão límpido como A Biblioteca de Babel.

Retornemos ao livro Ideias Recebidas Sobre as Grandes Descobertas. Ele contém muitos outros enfoques, sobre Cristóvão Colombo, Cortez, Magalhães. Mas os dois autores às vezes omitem algumas outras histórias bizarras. Por exemplo, a do navegador francês que partiu do porto de Honfleur, na Normandia, Binot Paulmier de Gonneville. Ele teria estado no Brasil em 1604, feito amizade com os índios carijós e levado para a França o filho do rei Arosca, o jovem Essomeric, que se casou na França e cujo bisneto teria sido cônego na corte do rei Luís XIV. Uma aventura sedutora.

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