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Guerra na Ucrânia impulsiona esforços para legalizar casamento gay

Uma petição foi apresentada ao presidente Volodmir Zelenski solicitando que casais de pessoas do mesmo sexo tenham os mesmos direitos de casais heterossexuais

Por Maham Javaid e Dan Bilefsky

THE NEW YORK TIMES - Como muitas outras pessoas na guerra na Ucrânia, o paramédico militar Olexander Shadskikh, de 23 anos, foi forçado a enfrentar sua própria mortalidade. Mas um outro medo também veio à sua mente: E se ele for morto e o namorado dele não descobrir a tempo para conseguir comparecer ao seu funeral?

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Segundo as regras do Ministério da Defesa ucraniano, o Exército tem a obrigação de informar pais e cônjuges dos soldados a respeito de suas mortes. Mas em um país que não reconhece casamentos nem uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, a regra não se aplica a casais gays. Shadskikh teme que, se ele não voltar vivo para casa, seu namorado, que ele pediu para ser identificado apenas pelo nome próprio, Vitalik, não saberá a respeito de sua morte a tempo de dizer o último adeus.

“Minha mãe não sabe que Vitalik existe”, afirmou ele. “Quero contar para ela quando voltar para casa.”

Defensores dos direitos de pessoas LGBT+ afirmaram que Shadskikh é um entre centenas — possivelmente milhares — de recrutas gays submetidos a uma ausência de direitos jurídicos que atendam eles e seus parceiros, que subitamente passou a representar um desafio palpável no período de guerra. Na Ucrânia, gays não têm direito automático de visitar um parceiro internado, compartilhar propriedade de imóveis com o parceiro, cuidar do filho do parceiro que morreu, solicitar o corpo do parceiro morto na guerra para sepultá-lo nem coletar benefícios do Estado relativos à morte do parceiro.

Olexander Shadskykh, um médico de combate do Exército, no prédio de registro de casamento em Kiev  Foto: Laura Boushnak/The New York Times - 30.07.2022

Mas a guerra está dando ímpeto a uma iniciativa para legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, com uma petição recentemente chegando ao gabinete do presidente Volodmir Zelenski solicitando que casais gays tenham os mesmos direitos de casais heterossexuais, incluindo direito a se casar.

“Neste momento, cada dia pode ser o último”, afirma a petição, que reuniu aproximadamente 30 mil assinaturas, o suficiente para acionar uma análise do presidente.

A autora da petição é a professora de inglês Anastasia Sovenko, de 24 anos, que vive no sul da Ucrânia e se identifica como bissexual. Ela afirmou que se sentiu compelida a redigir a petição depois de ler um artigo a respeito de soldados heterossexuais que se apressam para casar com suas namoradas antes de partir para a guerra — e se sentir triste, enfurecida e frustrada em razão de casais gays não terem essa opção.

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“Eles não conseguirão visitar sua alma-gêmea no hospital se algo acontecer”, afirmou Sovenko. “Se eles tiverem um filho, o filho será tirado do pai que estiver vivo, pois deve ficar com a mãe que o deu à luz. Porque segundo a lei, eles não são família. São apenas dois estranhos. E esta poderia ser sua última oportunidade na vida para se casar.”

Zelenski pode se recusar a atuar sobre a petição ou endossá-la redigindo um projeto de lei para estabelecer direitos de pessoas LGBT+ e mandá-lo para votação no Parlamento, onde seu partido, Servo do Povo, possui uma maioria significativa. Ele também pode passar o tema adiante, para debate no Parlamento. O gabinete de Zelenski não respondeu a vários pedidos de comentário.

Qualquer tentativa de mudar a lei enfrenta um enorme impedimento na Constituição ucraniana, que declara que “o casamento tem como base o livre consentimento de uma mulher e um homem”. Emendar a Constituição requer dois terços dos votos dos parlamentares.

O veterano de guerra ucraniano Viktor Pilipenko participa da Marcha da Igualdade, organizada pela comunidade LGBT+ em Kiev Foto: Valentyn Ogirenko/Reuters - 19.09.2021

Defensores dos direitos de pessoas LGBT+ dizem ter esperança de que Zelenski, um ex-comediante que qualifica a guerra em seu país como uma luta global pelos valores da democracia liberal e cujo país recentemente se candidatou para aderir à União Europeia, use o casamento igualitário como um tema capaz de melhorar as credenciais de liberdade da Ucrânia e ajudá-la a se aproximar do Ocidente.

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Inna Sovsun, especialista em políticas públicas da Escola de Economia de Kiev que atua como legisladora pelo partido progressista Holos, de oposição e favorável aos direitos LGBT+, afirmou que o Parlamento continua profundamente dividido em relação a direitos de casais gays, com a maioria dos parlamentares indecisa a respeito do assunto. Mas ela afirmou que Zelenski poderá persuadir os céticos caso se posicione energicamente a favor da lei.

Defensores de direitos afirmaram que pessoas LGBT+ na Ucrânia enfrentam discriminação rotineiramente, apesar de não tão amplamente quanto na Rússia, e eventos em celebração ao orgulho gay têm sido acompanhados de ameaças de violência de manifestantes antigays e grupos de extrema direita.

As atitudes sociais têm mudado na Ucrânia, onde a homossexualidade deixou de ser criminalizada em 1991, mas a amplitude dessa mudança não é evidente. Milhares de pessoas dançaram nas ruas durante a Parada do Orgulho Gay do ano passado em Kiev. O movimento pelos direitos das pessoas LGBT+ foi energizado pela revolução Maidan, de 2014, que tirou do poder o então presidente ucraniano pró-Moscou e ajudou a estreitar os laços entre ativistas pró-gays e outros ramos da sociedade civil.

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O tema na guerra

Uma pesquisa que entrevistou duas mil pessoas pelo telefone em maio, realizada pelo Instituto Internacional de Sociologia de Kiev, mostrou que, ao longo dos seis anos recentes, o número de ucranianos com uma “visão negativa” sobre a comunidade LGBT+ caiu de 60% para 38%. Mas uma pesquisa do Pew Research Center realizada em 2019 constatou que 69% dos ucranianos afirmam que a sociedade não deveria aceitar a homossexualidade.

Olexander Shadskikh exibe a insignia usada por alguns militares LGBT+, em Kiev  Foto: Laura Boushnak/The New York Times - 30.07.2022

Georgii Mazurashu, parlamentar do partido de Zelenski que propôs uma lei contra propaganda homossexual, afirmou que a maioria dos ucranianos se opõe ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ele afirmou que uma legislação determinando direitos a pessoas LGBT+ mandaria um “sinal alarmante para a sociedade e nossos valores tradicionais”. Aludindo à guerra, ele acrescentou, “Temos outros problemas incomparavelmente mais urgentes e sérios”.

Mas a guerra e a morte estão fazendo o tema emergir.

Oleksa Lungu, de 22 anos, afirmou que uma das decisões mais difíceis que ele já teve de tomar foi se compareceria ou não ao funeral de seu ex-namorado, Roman Tkachenko, de 21 anos, que foi morto em batalha em maio, próximo a Kharkiv. “Como eu ia explicar para a mãe dele quem eu era, o que estava fazendo por lá?”, perguntou Lungu. “Como eu conheci o Roman?”

Por fim, ele decidiu ir ao funeral.

“Não éramos casados, não estávamos em um relacionamento muito longo, então é claro que eu não estava esperando ter qualquer tipo de direito sobre o corpo dele”, afirmou Lungu. “Mas eu quis vê-lo antes dele ser enterrado para sempre.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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