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É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião|Oportunista, doença acelera jogo geopolítico

Grandes dinâmicas do sistema internacional, envolvendo China, Rússia, EUA e Europa, se precipitaram com a pandemia

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Foto do author Lourival Sant'Anna
Atualização:

Como todo vírus, o causador da covid-19 é um oportunista, que catalisa e dá nova expressão a processos já em andamento. É esse o seu impacto também no plano geopolítico. As três grandes dinâmicas do sistema internacional se precipitaram com a pandemia: o fortalecimento do componente autoritário na afirmação da China como superpotência; a projeção da Rússia e o acirramento das disputas com os Estados Unidos; e a divergência estratégica entre a Europa e Trump.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump Foto: AP Photo/ Evan Vucci

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A eclosão do coronavírus na China expôs duas fragilidades do país. Primeiro, o quanto os hábitos e a cultura dos chineses não conseguiram acompanhar a urbanização em ritmo atordoante nas duas últimas décadas. A transmissão do vírus para os seres humanos só foi possível por causa do papel central que animais silvestres ainda têm na culinária e na medicina tradicional chinesa.

Em segundo lugar, a resposta da China ao surto expôs as consequências de seu modelo híbrido de autoritarismo e capitalismo. A primeira reação das autoridades em Wuhan foi tentar abafar o surto, mesmo após a traumática lição da Sars, que se espalhou em 2003 graças à falta de transparência das autoridades.

O governo central chinês, ao tomar pé da situação, assumiu uma atitude muito mais proativa e transparente. Mas as medidas adotadas para conter a epidemia só foram possíveis graças ao caráter autoritário do regime. 

A China conseguiu desacelerar drasticamente a proliferação da doença. Com isso, as perdas, tanto no crescimento econômico quanto no prestígio do país, incluindo o programa de investimentos globais da Iniciativa da Rota da Seda, foram estancadas, mas não anuladas. Ainda vai levar um tempo até que possamos medir o tamanho desse prejuízo para a China e o seu impacto global.

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A queda no preço do petróleo causada pela diminuição da demanda em função do coronavírus também precipitou algo que estava à espreita: o uso da carta energética pela Rússia. Desde 2014, EUA e União Europeia adotam sanções contra a Rússia por causa de suas intervenções na Ucrânia. Em dezembro, o governo americano impôs medidas contra as empresas que participam da construção do gasoduto Nord Stream 2, que liga a Rússia à Alemanha.

A Rússia já estava incomodada com o papel regulador do preço do petróleo que os EUA vêm exercendo indiretamente, depois de se tornar o maior produtor e o quarto maior exportador, e de impor sanções à Venezuela e ao Irã. O governo americano calibra a produção desses países por meio de concessões para empresas de exploração e distribuição.

A Rússia rejeitou a proposta da Arábia Saudita de cortar a produção para elevar o preço do petróleo, rompendo uma aliança de mais de três anos com a Opep. A estratégia russa, ao manter o barril barato, é tirar do mercado o petróleo de xisto americano, que tem preço de extração bem mais alto que o convencional.

Por último, os governantes têm reagido ao coronavírus conforme as suas disposições frente ao mundo. A chanceler Angela Merkel, mesmo ao reconhecer que o vírus poderá contaminar entre 60% e 70% dos alemães, está mantendo por ora as fronteiras abertas. O governo conservador de Sebastian Kurz fechou a fronteira da Áustria com a Itália.

Trump anunciou na noite de quarta-feira a proibição da entrada de cidadãos do Espaço Schengen, que reúne 26 países europeus. Após contabilizar muitas perdas causadas pelo Brexit, o Reino Unido, que não pertence a essa área de fronteiras abertas, viu-se premiado por seu isolamento e foi excluído da medida. O presidente americano responsabilizou os governantes europeus por facilitar o alastramento da doença ao manter as fronteiras abertas.

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O coronavírus não está mudando os rumos do mundo. Está apenas acelerando seus passos numa trajetória que já estava traçada.

Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais

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