O que a gravidez e o parto fazem com os corpos das meninas

O aborto recente de uma menina gerou intenso debate nos EUA e aqui no Brasil; médicos especialistas dizem que o custo do parto em corpos jovens é brutal

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Por Stephanie Nolen
Atualização:

Depois que a história de uma menina de 10 anos de Ohio cruzando as fronteiras estaduais para fazer um aborto chamou a atenção dos Estados Unidos em julho, alguns proeminentes oponentes do aborto sugeriram que a criança deveria ter levado sua gravidez até o fim. (Aqui no Brasil, um caso semelhante também gerou discussão, quando uma menina de 11 anos teve seu acesso ao aborto legal dificultado.)

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Mas parteiras e médicos que trabalham em países onde a gravidez é comum em meninas adolescentes dizem que aqueles que pressionam para que meninas muito jovens levem a gravidez até o fim podem não entender o custo brutal da gravidez e do parto no corpo de uma criança.

“Seus corpos não estão prontos para o parto e é muito traumático”, disse Marie Bass Gomez, parteira e enfermeira sênior da clínica de saúde reprodutiva e infantil do Hospital de Saúde Materna e Infantil de Bundung, na Gâmbia.

Radiografia de uma menina de 10 anos saudável; médicos que trabalham com gravidez de menores de idade dizem que um problema crítico de saúde é que a pelve de uma criança é muito pequena para permitir a passagem até mesmo de um feto pequeno. Foto: Department of Radiology, U.C. San Diego Health via The New York Times

A questão fundamental é que a pélvis de uma criança é muito pequena para permitir a passagem de um feto até mesmo pequeno, disse o Dr. Ashok Dyalchand, que trabalha com adolescentes grávidas em comunidades de baixa renda na Índia há mais de 40 anos.

Elas têm o trabalho de parto prolongado, trabalho de parto obstruído, o feto pressiona a bexiga e a uretra”, às vezes causando doença inflamatória pélvica e ruptura do tecido entre a vagina e a bexiga e o reto, disse Dyalchand, que lidera uma organização chamada Institute of Health Management Pachod, uma organização de saúde pública que atende comunidades marginalizadas no centro da Índia.

“É uma condição lamentável, especialmente para meninas com menos de 15 anos de idade”, acrescentou. “As complicações, a morbidade e a mortalidade são muito maiores em meninas com menos de 15 anos do que em meninas de 16 a 19 anos, embora as de 16 a 19 anos tenham uma mortalidade duas vezes maior do que mulheres de 20 anos ou mais.”

Seus corpos não estão prontos para o parto e é muito traumático.

Marie Bass Gomez, parteira e enfermeira sênior da clínica de saúde reprodutiva e infantil do Hospital de Saúde Materna e Infantil de Bundung, em Gâmbia.

O fenômeno de meninas tendo bebês é relativamente raro nos Estados Unidos. Em 2017, o último ano para o qual havia dados disponíveis, houve 4.460 gestações entre meninas menores de 15 anos, com pouco menos da metade terminando em aborto, de acordo com o Instituto Guttmacher, que apoia o direito ao aborto e pesquisa clínicas regularmente.

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Mas, globalmente, as complicações relacionadas à gravidez e ao parto são a principal causa de morte de meninas de 15 a 19 anos, de acordo com a Organização Mundial da Saúde.

A idade materna jovem está associada a um risco aumentado de anemia materna, infecções, eclâmpsia e pré-eclâmpsia, parto cesáreo de emergência e depressão pós-parto, de acordo com uma avaliação de 2014 publicada no Journal of Neonatal-Perinatal Medicine.

Os bebês nascidos de meninas são mais frequentemente prematuros e têm baixo peso ao nascer, disse o Dr. Willibald Zeck, coordenador de saúde materna e neonatal do Fundo de População das Nações Unidas, que realizou com frequência o parto de mães jovens enquanto trabalhava como ginecologista na Tanzânia e mais tarde supervisionou programas de saúde materna no Nepal e nas Filipinas.

Enquanto uma menina grávida de 10 anos em Ohio pode ter acesso a cuidados pré-natais e uma cesariana que atenuaria os efeitos do trabalho de parto obstruído, a experiência da gravidez em uma menina é a mesma na Índia e nos Estados Unidos, disse Dyalchand. “As meninas passariam mais ou menos exatamente pelo mesmo tipo de complicação: a única diferença é que, devido ao acesso a melhores cuidados de saúde, elas podem não ter o mesmo tipo de resultados terríveis. Mas isso não significa que o corpo da garota e sua vida não fiquem marcados.”

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O Dr. Shershah Syed, ginecologista e especialista em mortalidade materna no Paquistão, atende regularmente meninas grávidas de até 11 anos. Ele disse que um bom atendimento pré-natal pode evitar o desenvolvimento de um orifício entre a parede da bexiga ou do reto e a vagina - uma fístula - que causa vazamento de urina ou fezes que não são apenas dolorosos (o vazamento de urina causa feridas ardentes), mas também uma fonte de enorme vergonha e humilhação.

Mas mesmo um bom pré-natal não pode prevenir a hipertensão ou infecções do trato urinário que são comuns em mães muito jovens, ele disse.

Na fisiologia normal, uma criança de 10 anos não deveria estar grávida. A questão é que ela é uma criança e uma criança não pode dar à luz, ela não está pronta”, disse Syed, acrescentando: “E a tortura mental pela qual ela passará não é mensurável”.

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Nos casos que ele viu, a gravidez precoce interrompe o crescimento físico da menina e muitas vezes também o seu desenvolvimento mental, porque muitas meninas abandonam a escola e perdem a interação social normal com os colegas, ele disse. Mas enquanto uma mãe anêmica luta para sustentar a gravidez, os fetos apropriam-se de nutrientes e continuam a crescer, até ultrapassarem muito o que a pélvis de uma jovem mãe pode aguentar.

Complicações, morbidade e mortalidade são muito maiores em meninas com menos de 15 anos do que em meninas de 16 a 19 anos, embora as de 16 a 19 anos tenham uma mortalidade duas vezes maior do que mulheres de 20 anos ou mais

Dr. Ashok Dyalchand, que trabalha com adolescentes grávidas em comunidades de baixa renda na Índia há mais de 40 anos.


“Elas ficam em trabalho de parto por três dias, quatro dias, cinco dias, e depois desse parto, geralmente o bebê morre. E quando a cabeça entra em colapso, o bebê nasce”, disse Syed, que é um dos maiores especialistas do sul da Ásia no reparo de fístula obstétrica, um resultado comum de parto obstruído em meninas grávidas.

Em quase todos esses casos, a menina desenvolveu fístula vesicovaginal, um orifício entre a parede da bexiga e a vagina. Em um quarto dos casos, o trabalho de parto prolongado também causará fístula do reto, de modo que a menina passa a ter vazamento constante de urina e fezes.

Se as portadoras de fístula souberem que há tratamento disponível e se dirigirem à sua clínica, Syed disse que pode reparar essa condição. Mas o processo requer uma longa recuperação: a fístula da bexiga leva cerca de cinco semanas para cicatrizar, enquanto uma fístula retal precisa de quatro ou cinco meses.

Em 1978, Dyalchand começou sua carreira em saúde pública em um pequeno hospital distrital na zona rural de Maharashtra, na costa oeste da Índia. Em sua primeira semana, duas jovens grávidas sangraram até a morte - uma em trabalho de parto, a outra na entrada do hospital. Isso fez com que ele começasse uma longa carreira de trabalho com comunidades para convencê-las a adiar a idade do casamento e a primeira concepção em meninas.

Essa intervenção mostrou um sucesso considerável e, observou Dyalchand, a Índia também vem expandindo constantemente o acesso ao aborto. O procedimento é legal até 24 semanas de gravidez.

Na Gâmbia, Bass Gomez disse que sua clínica é capaz de oferecer bons cuidados pré-natais a meninas grávidas, mas isso faz pouco para atenuar o trauma maior da experiência. Sua clínica é projetada para atender adultos, ela disse. “Mas quando você tem uma criança igualmente grávida aqui, é realmente traumatizante para a criança”, ela disse. “Não é confortável, aquele ambiente, não é para elas. Você pode dizer que elas estão sofrendo. Há muita vergonha e desgraça.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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