Como a Ucrânia mudou o rumo da guerra: a ofensiva que retomou Kharkiv da Rússia

Série em três capítulos mostra como ucranianos planejaram ofensiva contra a Rússia entre setembro a novembro, com auxílio de americanos e europeus

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Por Isabelle Khurshudyan , Paul Sonne , Serhiy Morgunov e Kamila Hrabchuk

A guerra da Ucrânia entrou em 2023 com um novo mapa da linha de frente e com a Rússia na defensiva após sucessivas vitórias de Kiev, tanto no campo de batalha, quanto nos contra-ataques aéreos que têm infligido perdas às tropas de Vladimir Putin. A mudança nos rumos da guerra só foi possível graças a uma eficaz estratégia de contraofensiva militar planejada em conjunto por ucranianos, americanos e europeus.

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Esta reconstrução das contraofensivas de Kharkiv e Kherson, que colocaram Putin na defensiva, se baseia em entrevistas com mais de 35 pessoas, entre elas comandantes ucranianos, autoridades de Kiev e soldados em combate, além de altos funcionários militares e políticos dos Estados Unidos e da Europa.

Dividida em três capítulos, esta série conta como a Ucrânia surpreendeu Putin e colocou a Rússia na defensiva. No capítulo desta quinta-feira, 5, a reportagem mostrará como se deu a retomada de Kharkiv, no leste da Ucrânia. Na sexta, 6, é a vez de um raio-X sobre a retomada de Kherson, no sul.

O início do ataque

No capítulo anterior, mostramos como as Forças Armadas ucranianas tinham recebido o sinal verde do presidente Volodmir Zelenski para executar o ambicioso plano de retomada de Kharkiv dos russos.

Em 6 de setembro, pouco após 3h30, a companhia de Oleh, um comandante de companhia ucraniano de 21 anos, de aproximadamente 100 soldados da 25.ª Brigada Aerotransportada de Assalto, começou a avançar em pequenas colunas de três veículos de infantaria. Por horas antes do início da movimentação, soldados de artilharia ucranianos atingiam posições russas com os sistemas M270 de lançamento múltiplo de foguetes, de fabricação americana.

Postos de comando. Depósitos de munição. Instalações de armazenamento de combustível. O fogo era implacável. Por todo o front, afirmaram posteriormente oficiais militares ucranianos, soldados russos ou seus apoiadores separatistas enfrentavam dificuldades para receber ordens ou se coordenar com forças próximas à medida que os foguetes caíam. Alguns soldados começaram a recuar.

“Rompemos a linha de frente, e o inimigo começou a entrar em pânico”, afirmou Oleh, falando sob condição de ser citado apenas pelo primeiro nome, porque seus parentes vivem em território ocupado pelos russos. “Eles estavam em pânico porque atacamos todas as posições na linha de frente ao mesmo tempo — a linha de frente, em si, era enorme, e havia avanços por todas as partes.”

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Tanque ucraniano na estrada para Izium durante a contraofensiva ucraniana. Foto: Wojciech Grzedzinski/ The Washington Post

Até o fim daquele primeiro dia, a companhia de Oleh tinha avançado cerca de 18 quilômetros enfrentando pouca resistência, chegando à beira de Volokhiv Iar, uma cidade pitoresca em uma ravina. Capturar essa relevante intersecção permitiria às forças ucranianas bloquear duas grandes estradas a caminho de Izium e Balakliia.

Segundo o plano de batalha original, no Dia 7 a companhia deveria tomar uma posição sobre uma colina ao norte de Izium, a aproximadamente 65 quilômetros do ponto inicial da ofensiva. Mas no dia anterior Oleh foi convocado para uma reunião, juntamente com outros comandantes de companhia. “Metade das unidades em Izium, talvez a maioria, estão simplesmente fugindo”, afirmou o comandante de seu batalhão. “Portanto estamos entrando em Izium.”

Quando a companhia de Oleh entrou no centro de Izium sem sofrer nenhuma baixa, os soldados ficaram estarrecidos com o que se depararam: tanques ordenados para funcionar, prontos para serem conduzidos; peças de artilharia abandonadas prontas para serem disparadas; tanques de combustível “cheios até a boca”; e toneladas de munição e armas leves.

Os soldados russos tinham tudo que precisavam para se defender seriamente, pensou Oleh, exceto a vontade de lutar e, aparentemente, homens suficientes. Até as unidades de elite da Rússia saíram correndo da área, dando-se conta de que Moscou não tinha uma cavalaria de apoio para mandar.

Debandada de Kharkiv abala Moscou

A recusa de Putin, por meses, em assumir o risco político de anunciar uma conscrição surtira consequências desastrosas.

Sem outra escolha, ele declarou o que chamou de “mobilização parcial”, para recrutar até 300 mil soldados, sua maior e mais arriscada escalada desde o início da guerra. Centenas de milhares de homens russos fugiram do país em frenesi.

Em um discurso, Putin caracterizou a mobilização como um passo necessário para repelir nações ocidentais dedicadas a destruir a Rússia. Ele também sugeriu que poderia usar armas nucleares.

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“Isto não é um blefe”, afirmou. Putin acelerou seus planos de anexação, declarando as regiões ucranianas de Donetsk, Luhansk, Zaporizhzhia e Kherson parte da Rússia apesar de não controlá-las totalmente.

Em 8 de outubro, Putin também designou o general Sergei Surovikin como primeiro comandante-geral a liderar a guerra russa em todo o teatro de operações

Através de sua linha direta com Surovikin, Putin começou a receber informações mais realistas sobre o campo de batalha, de acordo com duas fontes familiarizadas com o assunto, segundo as quais Putin vinha recebendo relatórios exageradamente otimistas de seus oficiais militares mais graduados.

O perigo de sua desconexão da realidade era inequívoco. Zelenski conseguira retomar Izium e discursar no centro da cidade.

Cerco a Izium e Liman

Depois da vitória de sua companhia, os soldados de Oleh passaram cerca de uma semana em Izium em meados de setembro, desfrutando do pensamento de que o fim da guerra estava próximo. Então eles se dirigiram para sudeste, atravessando para a região de Donetsk com ordens de retomar a cidade de Liman.

A companhia rumou mais para o sul, assumindo uma posição nas proximidades de Liman. Os russos na cidade estavam quase completamente cercados, mas, ao contrário de seus compatriotas em Izium, eles lutavam.

“Havia tanto fogo de artilharia do inimigo — tudo o que eles tinham, toda artilharia deles, os tanques, tudo estava sendo acionado contra nós, sobre as nossas cabeças”, afirmou Oleh. A única rota de fuga de Liman para os russos era uma estrada quase totalmente descoberta. Finalmente, certa noite a companhia ucraniana ouviu o ruído dos motores de uma grande coluna de veículos e cobriram a estrada com fogo de artilharia.

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Liman também tinha caído./ TRADUÇÃO GUILHERME RUSSO

No capítulo final, na sexta-feira, 6, veja como os ucranianos tomaram cidades de Kherson depois de minar a infraestrutura russa no sul da Ucrânia, poucas semanas antes da chegada do inverno na região

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