Ponte do Afeganistão vira rota de fuga caótica para aliados dos EUA

Palco de cerimônia que marcou fim da fracassada guerra soviética no país, há 32 anos, travessia ficou engarrafada de carros e caminhonetes carregados de soldados afegãos

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Por Redação
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DUSHANBE, Tajiquistão — A ponte tem um nome assustadoramente orwelliano — a Ponte da Amizade — e uma história marcante nas guerras do Afeganistão.

E, novamente na semana passada, a ponte que atravessa o rio Amu Darya, entre o Afeganistão e o Uzbequistão, serviu de pano de fundo para um momento decisivo nos confrontos. Em uma retirada caótica da cidade de Mazar-i-Sharif, soldados pró-governo fluíram para a travessia, em busca de segurança na margem oposta.

Fila de veículos blindados soviéticos cruzando a fronteira com o Afeganistão na Ponte da Amizade sobre o rio Amu Darya, em fevereiro de 1989. Foto: V. Kiselev/Sputnik, via Associated Press

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A cena na quinta-feira espelhou um momento icônico há 32 anos, no final da fracassada guerra soviética no Afeganistão, quando a ponte forneceu a última rota de saída do país para o derrotado Exército soviético.

Na época, bandeiras vermelhas fixadas nos veículos blindados tremularam em um vento de inverno enquanto as tropas soviéticas dirigiam e marchavam ao atravessar a ponte em 15 de fevereiro de 1989. O objetivo era sinalizar uma saída organizada e digna para o Exército da superpotência após uma década de ocupação e derrotas.

O comandante soviético, general Boris V. Gromov, caminhava sozinho atrás da última coluna blindada enquanto ela cruzava e saía do país. Ele, então, declarou que a atuação da URSS no Afeganistão havia acabado. “É isso”, Gromov disse a uma equipe de televisão. “Nenhum soldado ou oficial soviético está atrás de mim.” O Exército Vermelho retirou-se cerimonialmente.

Lenta e precisamente, os veículos blindados rolaram na ponte sobre o rio turbulento, como se estivessem em um desfile militar. Do lado usbeque, as mulheres receberam os soldados com a tradicional saudação de pão e sal. Os soldados ganharam relógios de pulso por seu serviço. Tudo foi filmado por câmeras de televisão.

O governo Biden fez questão de evitar um cerimonial de desfecho semelhante para o Exército dos EUA no Afeganistão, also agora dificilmente imaginável dado o colapso inesperadamente rápido do governo apoiado pelos EUA no domingo.

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O comandante dos EUA, general Austin Miller, deixou o país silenciosamente em 12 de julho. E os Estados Unidos esvaziaram seu quartel-general no campo de aviação de Bagram — um local originalmente construído pelos soviéticos — sem uma transferência formal para o Exército afegão.

A retirada dos soldados leais ao governo afegão apoiado pelos EUA, que entrou em colapso apenas três dias depois, foi uma cena mais caótica do que a partida soviética décadas antes.

O Taleban tomou Mazar-i-Sharif rapidamente depois de romper as linhas de frente do Exército afegão. As forças de segurança do governo e as milícias de dois senhores da guerra — o marechal Abdul Rashid Dostum e Atta Muhammad Noor — fugiram em direção à ponte, cerca de 72 km ao norte, em busca de segurança.

À noite, a Ponte da Amizade se tornou um engarrafamento de carros e caminhonetes carregados de soldados, como mostraram publicações nas redes sociais. Não houve saída digna.

Soldados do governo afegão em retirada se amontoaram em uma ponte sobre o rio Amu Darya que foi o pano de fundo do fracasso soviético no Afeganistão décadas atrás. Foto: Jim Huylebroek/The New York Times

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As autoridades uzbeques permitiram a entrada de um grupo de 84 soldados pró-governo, mas os prenderam por cruzarem ilegalmente a fronteira, disse o Ministério das Relações Exteriores em um comunicado. Eles impediram a passagem de outros.

As autoridades russas têm sido ambivalentes em suas declarações públicas sobre o colapso do governo apoiado pelos EUA no Afeganistão, três décadas após sua retirada.

Elas não deixaram de marcar os pontos de propaganda ao destacar o abandono de aliados e o fracasso de uma política externa dos EUA de longa data. Mas a Rússia agora também pode ser forçada a defender os Estados clientes da Ásia Central contra o extremismo islâmico no Afeganistão. Os militares dos EUA vinham fazendo esse trabalho.

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“Foi uma surpresa”, disse Zamir Kabulov, ex-embaixador russo no Afeganistão, em uma entrevista à estação de rádio Echo of Moscow, falando sobre o rápido colapso do governo apoiado pelos EUA. “Achamos que o Exército afegão, qualquer que fosse seu estado, resistiria por algum tempo. Mas, aparentemente, estávamos muito otimistas ao avaliar a qualidade do treinamento das forças armadas americanas e da Otan.”

A Casa Branca disse que o Exército afegão foi treinado e equipado, mas não teve vontade de lutar. “Eles têm o que precisavam”, disse a secretária de imprensa da Casa Branca, Jen Psaki, na semana passada.

E autoridades afegãs e americanas disseram que, desde 2018, Moscou armava clandestinamente um grupo do Taleban que operava em torno da cidade de Kunduz, um empoeirado centro comercial regional a leste da Ponte da Amizade. Foi, de certo modo, uma vingança pelo apoio dos EUA à insurgência antissoviética anos atrás.

Mas enquanto o Taleban varria o norte do Afeganistão neste verão, tomando Kunduz e outras grandes cidades no fim das contas, os militares russos posicionaram tanques para um exercício militar perto da fronteira com o Tajiquistão.

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