Eleições nos EUA: como a Geórgia, que elegeu Biden em 2020, pode levar Trump à Casa Branca neste ano

A comunidade afro-americana, vital para a vitória de Joe Biden na Geórgia, a primeira de um democrata no Estado desde 1992, não está entusiasmada em 2024. A insatisfação pode pavimentar o caminho de Trump para a Casa Branca

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Por Daniel Gateno
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ENVIADO ESPECIAL A ATLANTA – O cartão de visitas da Morehouse College é uma enorme estátua do reverendo Martin Luther King, líder do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos e ex-aluno da instituição de ensino. A universidade faz parte da história americana e contribuiu para que a cidade de Atlanta, capital do Estado da Geórgia, fosse um berço para o movimento pela igualdade racial. Em 2020, a comunidade de Morehouse, instituição historicamente frequentada por negros, foi essencial para a vitória de Joe Biden, mas em 2024 o entusiasmo não é o mesmo.

“Biden definitivamente não conquistou o meu voto ainda”, aponta Adebayo Abe, de 28 anos, ex-aluno e funcionário da Morehouse College, faculdade que foi fundada em 1867 e que aceita apenas homens. “A ligação do presidente com os afro-americanos não parece ser tão sincera quanto ele diz”, afirma Abe em seu escritório, que fica ao lado da livraria da instituição que exibe livros de grandes figuras afro-americanas do Partido Democrata, como o ex-presidente Barack Obama, a ex-primeira-dama Michelle Obama e a atual vice Kamala Harris.

Adebayo Abe, funcionário e ex-aluno da Morehouse College, faculdade historicamente frequentada por afro-americanos em Atlanta, não garante voto em Joe Biden nas próximas eleições  Foto: Daniel Gateno/Estadão

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O eleitorado afro-americano vota majoritariamente no Partido Democrata desde 1964, quando o então presidente Lyndon Johnson, um democrata, sancionou a Lei dos Direitos Civis. Na Geórgia o peso da comunidade negra é grande, já que os afro-americanos representam 33% da população total do Estado, segundo o Censo americano. Em 2020, a comunidade negra da Geórgia alavancou a surpreendente vitória de Biden no Estado, a primeira de um democrata desde 1992.

Mas a opinião de Abe reflete os questionamentos de muitos afro-americanos que votaram em Biden em 2020 e podem não apoiar o presidente em 2024. “Eu estava no barbeiro e em outros lugares que frequento perto de Morehouse e todos estavam falando sobre como gostam de Trump. Muitas pessoas se identificam com o jeito direto dele e dizem que ganhavam mais dinheiro quando ele estava no poder”.

Martin Luther King é o aluno mais famoso que já passou por Morehouse College, universidade historicamente frequentada por afro-americanos em Atlanta, Geórgia  Foto: Daniel Gateno/Estadão

O momento ruim para os democratas foi refletido nas pesquisas de opinião. Quatro enquetes publicadas em abril mostraram Trump com pelo menos 20% de apoio entre os negros adultos no país. Se estes resultados se concretizarem em novembro, o ex-presidente americano se tornará o republicano com a maior votação da população afro-americana desde Richard Nixon em 1960, que ocorreu antes da aprovação da Lei dos Direitos Civis.

Em 2020, Biden obteve 91% dos votos do eleitorado afro-americano, contra 8% de Donald Trump, segundo uma pesquisa da Associated Press (AP). O atual presidente precisa manter este apoio para ter uma chance de reeleição, especialmente em um pleito que pode ser decidido por pequenas margens em Estados como a Geórgia, onde Biden ganhou nas últimas eleições com uma diferença de um pouco menos de 12 mil votos.

O Estado é considerado um swing state, Estado-pêndulo em português, e é essencial para a definição do vencedor das eleições porque não tem um comportamento eleitoral definido, podendo fornecer seus 16 delegados no Colégio Eleitoral americano para democratas ou republicanos, dependendo da eleição. Até agora, as pesquisas de opinião colocam Trump na frente de Biden na disputa pela Geórgia. Segundo uma pesquisa da emissora americana CBS, que foi divulgada no dia 12 de março, o republicano lidera com 51% das intenções de voto, contra 48% para o presidente Joe Biden.

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O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, discursa na Morehouse College, em Atlanta, Geórgia, em janeiro de 2022  Foto: Patrick Semansky/AP

Questionamentos

O eleitorado afro-americano aponta incômodo com múltiplos problemas durante o primeiro mandato de Biden. Segundo eleitores entrevistados pelo Estadão, as reclamações incluem altas dívidas de empréstimo estudantil, preços no setor de habitação e aluguel, inflação e o apoio americano à guerra em Gaza.

Adebayo Abe questiona o acúmulo de dívidas de empréstimo estudantil que não foram perdoadas pelo governo Biden. Segundo a ONG Education Data Iniciative, 43 milhões de americanos possuem dívidas deste tipo, totalizando US$ 1,7 trilhão em passivos. Mesmo tendo se formado em 2017, o ex-aluno de Morehouse ainda não conseguiu quitar o montante. A Casa Branca destaca que Biden cancelou US$ 153 bilhões em dívidas estudantis para 4,3 milhões de pessoas desde o começo do mandato, mas não foi suficiente para sanar o problema. O democrata tenta desde o inicio de seu mandato conseguir sanar a sua promessa de perdoar o máximo de dívidas estudantis que for possível.

Morehouse tem ligações históricas com o Partido Democrata e já recebeu comícios de grandes figuras da legenda como o presidente Joe Biden, a vice Kamala Harris e o ex-presidente americano Barack Obama, mas o apoio dos estudantes ao partido não é automático. “Muitos democratas vem aqui durante a campanha e organizam comícios, mas eles podem não ter o mesmo apoio de 2020 porque Biden simplesmente não fez o que se comprometeu”.

Livros de Barack Obama, Kamala Harris e Michelle Obama são expostos na Livrária de Morehouse College, em Atlanta, Geórgia  Foto: Daniel Gateno/Estadão

Para afro-americanos mais velhos, como o cantor gospel Rodney Almington, de 50 anos, o valor do aluguel e as compras do mercado estão muito caras. “Biden precisa olhar para a classe média, precisa conversar com essas pessoas, independente de quem é negro ou branco, ele precisa entender estes problemas”.

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A atuação do governo Biden em política externa também não é vista com bons olhos. O motorista de Uber e empresário Romeo Stevens, de 34 anos, afirma que a administração democrata enviou altas cifras a Israel e Ucrânia e focou pouco em problemas domésticos. “O país está cheio de problemas, mas Biden decidiu enviar milhões de dólares à Ucrânia e Israel”.

Stevens também avalia que Biden mostrou fraqueza na presidência. “Israel está cometendo genocídio contra os palestinos, mas quando Biden pede para o primeiro-ministro de Israel acabar a guerra ele não escuta, mas se Trump tivesse feito este pedido ele teria escutado, com Trump os governantes de outros países sabem as consequências”, aponta Stevens.

O questionamento em relação ao apoio americano a Israel fez com que estudantes protestassem em universidades espalhadas pelos Estados Unidos. Em Morehouse, não foi diferente. As manifestações dos alunos devem aumentar, por conta da presença de Biden na universidade no dia 19 de maio, que deve discursar em uma cerimônia de formatura.

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Crescimento de Trump entre o eleitorado negro

Os republicanos buscam explorar estes problemas para garantir uma vitória de Donald Trump no Estado. “50 anos depois da Lei dos Direitos Civis nos EUA os afro-americanos estão se aproximando do Partido Republicano”, destaca Jason Shepherd, advogado e ex-líder republicano em Cobb County, subúrbio próximo de Atlanta.

Shepherd aponta que Donald Trump tem o potencial de atrair este eleitorado e sancionou leis no passado que foram aprovadas pelos afro-americanos, como a reforma do sistema de justiça criminal em 2018, que promulgou mudanças na lei criminal federal dos EUA com o objetivo de reformar as prisões federais, reduzir a reincidência e diminuir a população carcerária federal.

“O governo Trump foi muito melhor para os negócios. Se você é um empreendedor negro e começou uma empresa durante o governo Trump o seu negócio está muito bem, mas se este empreendedor começou uma empresa na administração Biden o empreendedor não está tão bem”, opina Shepherd.

O ex-presidente americano Donald Trump observa o senador Tim Scott, da Carolina do Sul, discursar em um comício em Columbia, Carolina do Sul  Foto: Andrew Harnik/AP

A avaliação de Shepherd é a mesma de Romeo Stevens, que se considera independente, mas vai votar em Trump em 2024. “Eu sou pró-negócios e ele também. O eleitorado negro que é empreendedor com certeza está com Trump”.

A preocupação com a economia, usada pelos republicanos como arma eleitoral contra o governo Biden, parece estar atingindo os eleitores apesar dos bons indicadores recentes, que indicam um mercado de trabalho aquecido sob o governo Biden. De acordo com o payroll americano de março, o indicador que mede a criação de empregos nos EUA, 315 mil empregos foram criados no mês, muito acima da maioria das projeções. Já o relatório em abril foi abaixo do esperado, com 175 mil empregos criados,

A taxa de desemprego reduziu de 3,9% em fevereiro para 3,8% em março. Em abril, o número retornou a 3,9%. Já os dados da inflação não são tão animadores. O índice de preços ao consumidor (CPI, na sigla em inglês) dos EUA subiu 0,4% em março, mesma taxa de fevereiro. Em relação a março do ano passado, a inflação ficou em 3,5%, acima das projeções e acima dos 3,2% do mês passado na variação anual.

“Os republicanos estão focando na alta dos preços, mesmo que evidências sugiram que isso está sendo compensado pelo aumento nos salários. Mas se simplesmente compararmos os preços para comida e gasolina, os preços agora estão mais altos do que há quatro anos”, afirma o professor de ciência política da Universidade da Geórgia, Charles Bullock.

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A resposta dos democratas

Os democratas confiam que conseguem reverter as pesquisas na Geórgia. “Nós podemos vencer. O presidente Biden tem muito dinheiro em caixa para gastar na campanha, bem mais do que Trump neste momento, e vamos receber este investimento e mostrar para a nossa base o que está em jogo”, avalia Charlie Bailey, um democrata que foi candidato a Lieutenant Governor (equivalente a vice-governador) em 2022 na Geórgia. A campanha de Biden declarou que possuem US$ 192 milhões até este momento. Já a equipe de Trump apontou que a campanha possui 93,1 milhões de dólares.

Para o CEO do Atlas Strategy Group e vice-líder do Comitê Nacional Democrata, Michael Blake, os eleitores afro-americanos têm questionamentos legítimos em relação ao governo Biden, mas optar por um retorno de Trump à Casa Branca seria um erro. “Esta eleição não é uma eleição de mudanças, não teremos um novo candidato. É realmente uma eleição em que um ex-presidente está tentando convencer as pessoas que elas deveriam voltar para suas políticas racistas e discriminatórias. Os eleitores querem algo que os inspire para o futuro e por isso acredito que Biden vai vencer”.

O Partido Democrata teve uma série de vitórias na Geórgia nos últimos anos, com Biden vencendo o Estado em 2020 e a legenda emplacando dois senadores: Raphael Warnock, o primeiro afro-americano a ser eleito para o cargo pela Geórgia, e Jon Ossoff, o primeiro judeu a ser senador no Estado. Analistas apontam que o trabalho encabeçado pela advogada e ativista Stacey Abrams, fundadora das organizações Fair Fight e New Georgia Project foi essencial para as vitórias do partido.

A então candidata ao governo da Geórgia Stacey Abrams participa de comício ao lado do ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama e o senador Raphael Warnock, em Atlanta, Geórgia  Foto: Gabriela Bhaskar/NYT

Em um país que o voto não é obrigatório, estas organizações conseguiram engajar um eleitorado que não participava do processo eleitoral. De acordo com o site americano Politico, as organizações fundadas por Abrams registraram 200 mil novos votantes para as eleições para governador da Geórgia em 2018 e 800 mil nas eleições presidenciais de 2020. A maioria dos novos votantes era jovem e fazia parte do eleitorado afro-americano.

“Stacey Abrams ajudou muitas pessoas que não tinham como votar porque moravam longe dos centros de votação ou porque não tinham carro. As organizações que ela fundou levaram idosos para os centros de votação, a maioria eram afro-americanos”, reconhece Adebayo Abe, funcionário que trabalha em Morehouse.

Apesar disso, o movimento perdeu tração nos últimos anos. Stacey Abrams foi a candidata democrata nas eleições para o governo da Geórgia em 2022, mas perdeu para o republicano Brian Kemp, que estava concorrendo à reeleição. Charlie Bailey, que concorria em uma eleição separada para Lieutenant Governor (equivalente a vice-governador), perdeu para o republicano Burt Jones. A organização Fair Fight, fundada por Abrams, reduziu a sua equipe ao demitir 19 funcionários em 2024 após se envolver em diversos processos na justiça sobre as leis de votação na Geórgia e ser condenada a pagar altas cifras à justiça.

Margens

Bullock ressalta que o quadro está favorável para os republicanos no Estado, mas sinaliza que muitos afro-americanos que em abril apontam que podem votar em Trump devem mudar de ideia até novembro. “Temos um padrão na Geórgia que mostra uma incerteza no eleitorado afro-americano. Os homens negros tendem a se interessar mais pelo Partido Republicano do que mulheres, mas quando nos aproximamos do pleito o voto da comunidade negra tende a voltar para os democratas”.

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O especialista também não acredita na possibilidade de Trump se tornar o candidato presidencial republicano com mais votos da comunidade negra desde Nixon. Porém, o professor da Universidade da Geórgia aponta que um pequeno avanço de Trump nas porcentagens já pode mudar a eleição.

“Em 2020 Trump teve 11% dos votos do eleitorado negro na Geórgia. Se ele tivesse conseguido 12% ele teria vencido a eleição no Estado”, ressalta o professor da Universidade da Geórgia.

Bullock destaca que uma abstenção do eleitorado afro-americano também pode ajudar Trump a vencer. Os democratas precisam que o eleitorado afro-americano represente 30% dos votos totais no Estado, avalia o especialista. “Biden precisa que os afro-americanos votem em um número próximo da totalidade do eleitorado no Estado para ter uma chance de vencer na Geórgia. Uma abstenção alta da comunidade negra seria muito negativa para o presidente”.

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