‘Presença estrangeira enfraqueceu democracia do Haiti’, diz ex-representante da OEA

Enfraquecimento democrático no Haiti é anterior às polêmicas do governo atual e foi acentuado por interferências estrangeiras, diz Ricardo Seitenfus, representante especial da OEA no Haiti entre 2009 e 2011

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Por Renato Vasconcelos
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Assim que as primeiras notícias sobre o assassinato do presidente do Haiti, Jovenel Moïse, foram publicadas na quarta-feira, analistas internacionais expressaram preocupação com a continuidade da democracia haitiana. Mas esse enfraquecimento democrático no Haiti é anterior às polêmicas do governo atual e foi acentuado por interferências estrangeiras durante a Missão de Paz da ONU realizada entre 2004 e 2017, segundo Ricardo Seitenfus, representante especial da OEA no Haiti entre 2009 e 2011. 

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Autor de Haiti - Dilemas e Fracassos Internacionais (Unijuí, 2014) e A ONU e a epidemia de cólera no Haiti (Alameda, 2019), obras de referência sobre a história política haitiana e das missões de paz no país, traduzidas para três idiomas, o professor aposentado da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) chegou a narrar como um resultado eleitoral no país foi alterado com a anuência da comunidade internacional. Confira os principais trechos da entrevista ao Estadão.

O que o assassinato do presidente Jovenel Moïse diz sobre a situação política e social do Haiti? Diz que nós estamos em um processo extremamente perigoso, e atingindo patamares pouco usuais nas crises político-eleitorais haitianas. Em mais de 200 anos de história independente do Haiti, esse é o terceiro presidente a ser assassinado. Dezenas deles foram expulsos do poder por meio de impedimentos, de golpes, mas não se chegava a esse extremo. Havia, inclusive, uma espécie de modelo de saída para uma ‘crise aguda política’, em que o perdedor recebia um passaporte diplomático, ia para o exterior e etc., mas sempre houve um entendimento de que não se deveria tocar na figura do presidente, e muito menos na sua família. Então eu acho que nós alcançamos um patamar muito perigoso e inédito nas crises político-eleitorais haitianas.

Mortedo presidente haitiano ameaça desestabilizar ainda mais o país mais pobre das Américas Foto: EFE/ Jean Marc Herve Abelard

O que vai ser do processo eleitoral no país, que estava marcado para ano que vem? É a constituição que rege isso. O que diz a constituição? Em caso de impedimento, falecimento, doença e etc., durante os últimos seis meses de mandato do presidente, é o primeiro-ministro que assume. O governo que organiza eleições em um prazo de três meses. E é isso que vai acontecer. O agravante aqui é que Moïse havia designado um outro primeiro-ministro na segunda-feira, que não tomou posse ainda. E ele já reivindicou o cargo. Isso cria uma situação um pouco mais complicada, mas espero que eles se acertem logo e que a oposição tenha a capacidade de controlar os seus apetites eleitorais, organizem-se para as eleições e ganhem o poder através das urnas.

O senhor acredita que há força institucional suficiente para que o processo constitucional seja cumprido neste momento de fragilidade? Sim. Isso se as forças estrangeiras, países supostamente próximos do Haiti, não interferirem. Pelo que eu sei, eles declararam apoio à institucionalidade, ao Estado de Direito e à constituição haitiana. 

A investigação pode ser resolvida rapidamente ou permanecer sem solução. Qual dos dois leva mais instabilidade ao cenário eleitoral? Depende de para quem você faz essa pergunta. Eu acho que (o assassinato) tem implicações internas fortes em meios empresariais, com vínculos no exterior, porque os mercenários são estrangeiros. Na minha opinião, a eleição deveria ser feita à luz de todos os fatos, sobretudo porque não somente seria resolvido esse crime bárbaro, mas também nós poderíamos, a partir daí, tomar algumas medidas quanto a esses grupos que se escondem através do anonimato, se esconde através de doações a manifestantes, que se esconde através de financiamento de gangues. É um mundo paralelo que poderia vir à luz.

Analistas apontam que o momento é de volatilidade, mas tudo depende de se haveria reação violenta nas ruas. O que é que o senhor imagina dessa transição de poder, tendo em vista esse contexto? O povo haitiano é muito ordeiro, muito pacífico e adora viver. Quando aconteceu o fato, eles ficaram absolutamente chocados e se recolheram em suas casas, seguindo a solicitação do governo. A oposição também foi sábia, pois sabe que, indiretamente, está por trás desse assassinato ao dar eco a todo tipo de acusação contra o presidente. Eu vejo que o assassinato terrível e bárbaro de Moïse servirá para acalmar o jogo e levará a eleições e a assunção de um presidente novo em fevereiro de 2022. A oposição dizia que não iria às eleições com a presença de Moïse. Ele dizia que não seria candidato, mas agora sequer estará organizando as eleições. Então, não há nenhuma razão para a oposição não ir às eleições. A minha percepção é de que nós teremos eleições e que a situação se acalmará.

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Atualmente, a comunidade internacional vem atuando de alguma forma para garantir a estabilidade política no Haiti? Não. Cada país está fazendo o seu jogo.A OEA tenta fazer o jogo da legalidade. As Nações Unidas acompanham a OEA. Os EUA, às vezes, atuam de alguma forma, mas a França, não. O Brasil é quase indiferente, não tem uma posição muito clara na relação da política externa com o Haiti. Apesar do nosso embaixador ser muito competente, Brasília não tem muito interesse. Eu não poderia falar de comunidade internacional, eu teria que falar de interesses nacionais de cada país e de suas relações com o Haiti.

E qual seria o interesse do Brasil? O Brasil não tem interesse no mundo. Não tem interesse pela política externa. Isso já vem do final do governo da Dilma, veio se agravando com o Temer e agora está em um patamar inimaginável na nossa história diplomática.

Ricardo Seitenfus (E), ao lado de militares no Haiti, em 2010 Foto: MARCOS ARCOVERDE/AGENCIA

O que mudou no Haiti com a missão de paz, e o que mudou do fim dela, em 2017, até agora? Desde 1993, foram realizadas dez missões no Haiti, e a ONU ainda permanece lá, com seu escritório de representação e de mediação política. No entanto, a Minustah (2004-2017) se destaca por várias razões, e a primeira é o custo, que é imensamente maior que o resto somado. Para nós que estávamos lá, a verdadeira missão era a Minustah. Se dizia, na época, que ela era a missão para resolver e não voltar mais. Somente para o seu funcionamento, ela gastou US$ 9,6 bilhões. Mas falar o que melhorou é muito difícil, porque no meio da missão teve o terremoto de 2010. Ele embaralha todas as cartas e tira o foco da segurança. A missão passou a limpar a cidade, a conseguir abrigo para os desabrigados, perdeu o foco. A missão de paz deveria ter acabado em 2011 ou 2012, e teria que ter tido outros tipos de missão para reconstrução, uma missão civil. Eu acho que perdemos muito tempo prorrogando algo que não deveria ser prorrogado.

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Qual o efeito da missão de paz no Haiti? Após o terremoto, ao não dar prioridade às instituições haitianas, a missão, e o que se seguiu dela, ou seja, todas as doações para a reconstrução do Haiti, enfraqueceram o Estado e as instituições. Para que se tenha uma ideia, dos 6,5 bilhões de dólares que, em princípio, foram doados para a causa haitiana, somente 1% passou pelo Estado haitiano. Eu acho que a presença internacional enfraqueceu, não somente as instituições, mas a própria democracia haitiana. Há exemplos onde a missão ou o seus representantes, o representante pessoal do Secretário-Geral, interviu em processos eleitorais. Tentou afastar o presidente René Préval no final de novembro de 2010. Eu te falo isso, porque eu participei da reunião e, como representante da OEA, impedi que acontecesse. É fato histórico, fato provado, e que mancha as missões de paz.

Então, pelo menos nesse caso, há participação direta da intervenção internacional na instabilidade política do país? Total. Tanto é que como não havia unanimidade (sobre a retirada do presidente em exercício) e eu consegui me opor a isso durante a reunião, com a adesão de outros, como a Unasul e o próprio Brasil, o que se fez foi mudar o resultado da votação daquele dia. Colocou-se o candidato que estava em terceiro lugar no segundo turno, e o que estava em segundo lugar caiu para terceiro, que era o candidato da situação. Isso foi feito pela Hillary Clinton, pelos Estados Unidos, e os outros países finalmente aceitaram. Um testemunho fundamental a ser dado é o do Celso Amorim, que era ministro das Relações Exteriores do Brasil. O Brasil concordou com isso. O Brasil não se opôs.

Qual a condição desses grupos armados hoje dentro do Haiti e como eles têm acesso a tantas armas dentro de um território tão reduzido? O papel da polícia haitiana, com ajuda internacional, é de controlar o ingresso de armas no país, mas esse trabalho não foi feito nos últimos anos, inclusive com as gangues possuindo armamento mais moderno que a própria polícia. Os mercenários envolvidos no assassinato entraram no país com armas pesadas, armas de guerra, sem problema algum, e esse não é o primeiro episódio. Mas não podemos esquecer que são 1.700 km de fronteiras marítimas e 480 km de fronteira terrestre. Além disso, há a proximidade com os Estados Unidos, onde se sabe que o comércio de armas é irrestrito. A maioria dessas armas vem de lá, do mesmo jeito que vem para o crime organizado aqui no Brasil, às vezes chegando pelo próprio aeroporto ou por portos privados no Haiti.

Moïse acumulou polêmica durante seu governo, desde a eleição, e ainda discutia qual o prazo final de seu mandato. Como a escalada de tensões entre ele e a oposição alcançou esse desfecho? Eu creio que é necessário olhar a política econômica do presidente Moïse, e procurar quem ficou incomodado com o fato dele atacar alguns monopólios que são propriedade privada de famílias de empresários haitianos. Esse assassinato, não é algo preparado pelas gangues e nem pelos políticos dos duzentos e tantos partidos de oposição. Tem que se procurar pessoas e grupos que tenham poder econômico e que tenham também veleidades políticas. Políticos e empresários do Haiti, que tenham condições de pagar o que foi pago ao grupo de mercenários estrangeiros.

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