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Putin está cometendo um erro histórico; leia artigo de Madeleine Albright

Ex-secretária de Estado dos EUA entre 1997 e 2001 visitou o então presidente interino da Rússia no Kremlin em 2000 e registrou suas impressões: 'Putin é pequeno e pálido (...) quase tão frio quanto um réptil'

Por Madeleine Albright
Atualização:

No início de 2000, tornei-me a primeira autoridade-sênior dos Estados Unidos a encontra-se com Vladimir Putin em sua nova função como presidente-interino da Rússia. Nós, no governo Clinton, não sabíamos muito a respeito de Putin na época - somente que ele havia iniciado sua carreira na KGB. Eu esperava que a reunião me ajudasse a conhecer o homem e avaliar o que sua súbita ascensão poderia significar para as relações EUA-Rússia, que haviam se deteriorado em meio à guerra na Chechênia. Sentada a uma pequena mesa junto a Putin no Kremlin, fiquei imediatamente impressionada com o contraste entre ele e seu bombástico antecessor, Boris Yeltsin.

Enquanto Yeltsin havia persuadido, rugido e adulado, Putin falava sem demonstrar emoção nem soar nenhuma nota de sua determinação em reavivar a Rússia economicamente e esmagar os rebeldes chechenos. Voando de volta para os EUA, registrei minhas impressões. “Putin é pequeno e pálido”, escrevi, “quase tão frio quanto um réptil”. Ele alegava entender por que o Muro de Berlim tinha de cair, mas não esperava que a União Soviética colapsasse totalmente. “Putin está envergonhado com o que aconteceu com seu país e determinado a restaurar sua grandeza.”

A secretária de Estado americanaMadeleine Albright sorri e aperta a mão do presidente russo Vladimir Putin durante visita ao Kremlin, em 02 de fevereiro de 2000. Foto: Photo by Mikhail Metzel REUTERS

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Nos meses recentes, enquanto Putin concentrava tropas nas fronteiras da vizinha Ucrânia, aquela reunião de quase três horas com ele veio à minha memória. Depois de chamar o estatuto de Estado da Ucrânia de ficção, Putin assinou um decreto reconhecendo as duas regiões controladas por separatistas na Ucrânia e enviou tropas para lá.

A revisionista e absurda asserção de Putin de que a Ucrânia é “inteiramente criada pela Rússia” e foi efetivamente roubada do Império Russo é totalmente destinada a se alinhar à sua pervertida visão de mundo. Mais perturbador para mim: Foi sua tentativa de estabelecer o pretexto para uma invasão total.

Nos ímpares 20 anos que se passaram desde que nos encontramos, Putin traçou seu curso evitando desenvolvimentos democráticos à cartilha de Stálin. Ele acumulou poder político e econômico - cooptando ou esmagando possíveis competidores - enquanto pressionou para restabelecer uma esfera de domínio russo em partes da antiga URSS. Como outros autoritários, ele equipara seu próprio bem-estar ao da pátria e oposição a traição. Putin está certo de que os americanos espelham tanto seu cinismo quanto sua sanha pelo poder; e de que num mundo em que todos estão mentindo, ele não tem nenhuma obrigação de dizer a verdade. Por acreditar que os EUA dominam sua própria região pela força, ele crê que a Rússia tem o mesmo direito.

Putin buscou por anos rebrilhar a reputação internacional de seu país, expandir o poderio militar e econômico da Rússia, enfraquecer a Otan e dividir a Europa (enquanto incita uma barreira entre os europeus e os EUA). A Ucrânia faz parte disso tudo.

Em vez de pavimentar o caminho russo à grandeza, invadir a Ucrânia comprovaria a infâmia de Putin, ao deixar seu país isolado diplomaticamente, incapacitado economicamente e vulnerável estrategicamente, em face a uma aliança ocidental mais forte e mais unida.

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Ele já acionou esse mecanismo ao anunciar na segunda-feira sua decisão de reconhecer os dois enclaves separatistas na Ucrânia e enviar “tropas de paz” russas para as regiões. Agora ele exige que Kiev reconheça a reivindicação russa pela Crimeia e entregue seu armamento avançado.

As ações de Putin desencadearam sanções massivas, e mais virão se ele lançar um ataque total e tentar tomar a Ucrânia inteira. Isso devastaria não apenas a economia russa, mas também o estreito círculo de comparsas corruptos de Putin - que, em troca, poderiam desafiar sua liderança. O que certamente será uma guerra sangrenta e catastrófica drenará os recursos da Rússia e cobrará vidas russas - ao mesmo tempo que criará um incentivo urgente para a Europa se livrar de sua perigosa dependência da energia russa. (Isso já começou, com a manobra alemã para impedir a certificação do gasoduto Nord Stream 2).

Tamanho ato de agressão quase certamente faria com que a Otan reforçasse significativamente seu flanco oriental e considerasse estacionar forças permanentemente nos Estados bálticos, na Polônia e na Romênia. (O presidente Joe Biden afirmou na terça-feira que está enviando mais soldados para os países Bálticos.) E isso geraria uma feroz resistência armada na Ucrânia, com forte apoio do Ocidente. Um esforço bipartidário já está em andamento para cunhar uma resposta legislativa que incluiria aumentar a ajuda letal à Ucrânia. Seria muito além de uma repetição da anexação da Crimeia, em 2014; trataria-se um cenário que remeteria à malfadada ocupação soviética do Afeganistão, nos anos 80.

Biden e outros líderes ocidentais deixaram isso muito claro rodada após rodada de diplomacia furiosa. Mas mesmo se o Ocidente for de alguma maneira capaz de dissuadir Putin de uma guerra total - hipótese longe de estar garantida neste momento - é importante lembrar que a competição preferida dele não é o xadrez, como assumem alguns, mas o judô. Podemos esperar que ele persista em buscar uma chance de aumentar sua influência e atacar no futuro. Caberá aos EUA e seus amigos negar-lhe essa oportunidade sustentando uma vigorosa resposta diplomática e aumentando o apoio econômico e militar à Ucrânia.

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Apesar de que Putin jamais, segundo minha experiência, admitirá estar cometendo um erro, ele tem demonstrado que é capaz tanto de paciência quanto de pragmatismo. Ele também é certamente consciente de que a atual confrontação o deixou ainda mais dependente da China; ele sabe que a Rússia é incapaz de prosperar sem algum laço com o Ocidente. “Claro que gosto de comida chinesa. É divertido usar os palitinhos”, disse-me ele em nosso primeiro encontro. “Mas isso não passa de uma trivialidade. Não é nossa mentalidade, que é europeia. A Rússia tem de integrar firmemente o Ocidente.”

Putin deve saber que a Rússia não se sairia necessariamente bem de uma segunda Guerra Fria - mesmo com suas armas nucleares. Aliados fortes dos EUA podem ser encontrados em quase todos os continentes. Os amigos de Putin, enquanto isso, incluem tipos como Bashar Assad, Alexander Lukashenko e Kim Jong-un.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, acompanham lançamento de mísseis em Moscou. Foto: Alexey Nikolosky/ Sputnik / AFP

Se Putin sente-se encurralado num canto do ringue, ele só pode culpar a si mesmo. Como Biden notou, os EUA não têm nenhum desejo de desestabilizar a Rússia nem privar o país de suas aspirações legítimas. Este é o motivo de Washington e seus aliados terem se oferecido para negociar com Moscou a respeito de uma ampla gama de temas de segurança. Mas os EUA têm de insistir para que a Rússia aja em acordo com padrões internacionais aplicáveis para todos os países.

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Putin e seu homólogo chinês, Xi Jinping, gostam de afirmar que vivemos atualmente num mundo multipolar. Ainda que isso seja evidente, não significa que grandes potências tenham direito de fatiar o planeta em esferas de influência como os impérios coloniais fizeram séculos atrás.

A Ucrânia tem direito à sua soberania, não importa quem sejam seus vizinhos. Na era moderna, grandes países aceitam isso - e Putin também deve aceitar. Essa é a mensagem que sustenta a recente diplomacia ocidental. E define a diferença entre um mundo governado pelo estado de direito e um mundo sem regras./ TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*Albright foi secretária de Estado dos EUA de 1997 a 2001