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The Economist: Republicanos reescrevem a história que seu líder causou

A insurreição foi a expressão lógica da grande mentira de Trump, posta em prática orgulhosamente por 2 mil de seus devotados apoiadores

Por The Economist
Atualização:

Dawn Bancroft, de 59 anos, dona de uma academia de ginástica no Estado da Pensilvânia, viajou para a capital americana um ano atrás para ouvir Donald Trump discursar, não para cometer algum ato de terrorismo. Ainda assim, enquanto marchava sobre a Constitution Avenue, com as instruções do ex-presidente de “lutar com toda força” nos ouvidos, Bancroft aparentemente se desviou de seu farol moral. 

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Abrindo caminho através da multidão que se aglomerava do lado de fora do edifício do Capitólio, ela e sua amiga Diana chegaram a uma janela despedaçada e passaram por ela. “Entramos lá, fizemos nossa parte”, explicou Bancroft em uma mensagem de vídeo para seus filhos. “Estávamos atrás de Nancy (Pelosi, líder democrata) para meter uma bala na cabeça dela. Mas não a encontramos.”

Após ouvir a mulher declarar-se culpada por contravenção, em setembro, o juiz Emmet Sullivan levantou uma questão: “Como pessoas de bem, que nunca tiveram problemas com a lei, transformam-se em terroristas?”

Documentos judiciais sugerem que poucas das aproximadamente 700 pessoas indiciadas pela insurreição até agora – incluindo 225 acusadas de agredir a polícia ou atrapalhar o trabalho policial – possuem condenações anteriores ou ligações com grupos de extrema direita. 

Trump fala a apoiadores em 6 de janeiro de 2021; discurso de ex-presidente instigou pessoas comuns Foto: Mandel Ngan/AFP

A maioria era composta dos mesmos cidadãos comuns brancos, empolgados e ostentando propagandas pró-Trump, que sempre lotaram os comícios do ex-presidente: donos de pequenos negócios, professores, corretores de imóveis e aposentados. 

Contrariamente à inferência da questão do juiz Sullivan, isso não é mistificador, mas autoexplicativo. Se você acreditou que a eleição foi fraudada, como acreditaram dezenas de milhões de republicanos mesmo antes de os resultados serem apurados, por que motivo você não tomaria as medidas desesperadas que Trump exigiu? Bancroft e outras pessoas pensavam que estavam cumprindo um dever patriótico. 

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A maioria não tentou esconder sua identidade. Uma corretora de imóveis do Texas fez propaganda de sua firma enquanto transmitia ao vivo o ataque; um cidadão de Ohio arrebentou com um chute uma janela do Capitólio vestido com uma jaqueta que exibia o nome e o telefone de sua empresa de decoração. 

A insurreição, como o maior esforço judicial da história americana já deixou claro, foi a expressão lógica da grande mentira de Trump, posta em prática orgulhosamente por 2 mil de seus devotados apoiadores. Para condenar a violência, os republicanos não tiveram alternativa a não ser repudiar a mentira. Tendo fracassado em fazê-lo, eles estão, em vez disso, normalizando-a. 

Esse processo começou horas depois da insurreição, quando a maioria dos congressistas republicanos formalmente contestou o resultado da eleição. Isso pôs fim a qualquer possibilidade de que eles rompessem com Trump, que reescreveu cuidadosamente a realidade da violência que causou. 

O ex-presidente alegou que os desordeiros eram gente “inocente” e “perseguida” pela polícia; que a verdadeira “insurreição ocorreu” no dia da eleição – ainda assim, se alguns de seus apoiadores tivessem se excedido, e daí? Trump também sugeriu que foi “senso comum” os agitadores entoarem o verso “Enforquem Mike Pence” durante a insurreição, dada a relutância de seu vice em fraudar a eleição. 

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Esta é a desinformação “trumpiana” clássica: uma miríade de dissonâncias cognitivas inconsistentes para seus apoiadores selecionarem. O ex-presidente celebra a violência deles, enquanto nega que isso tenha ocorrido ou culpa o outro lado. 

Com sua fidelidade a Trump reafirmada, a maioria dos congressistas republicanos sentiu-se compelida a evitar investigações sobre a insurreição. Os republicanos barraram uma investigação de alto nível a respeito da violência – e, quando os democratas propuseram uma comissão especial da Câmara dos Deputados, com menos poder, em vez disso, a iniciativa foi atacada pelos republicanos, que a qualificaram como uma manobra partidária. 

Com a participação de dois escrupulosos republicanos, Liz Cheney e Adam Kinzinger, essa comissão entrevistou centenas de testemunhas desde que foi estabelecida. Mas seus alvos principais, Trump e seu alto escalão, estão obstruindo o trabalho, aparentemente com a esperança de que os republicanos reconquistem maioria na Câmara, em novembro, e dissolvam a comissão.

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Ambos os cenários parecem prováveis, em parte porque a maioria dos eleitores republicanos também não está interessada em escrutínios sobre a violência. Um ano depois da insurreição, que deixou 5 mortos e mais de 100 policiais feridos, a maioria dos republicanos diz que o levante foi pacífico ou “pouco” violento; e Trump tem pouca ou nenhuma responsabilidade pelo ocorrido. 

Os democratas dizem o oposto. E também desconfiam das motivações de seus oponentes. Menosprezar a violência é racionalizá-la, o que, no atual ambiente carregado de tensão, acreditam muitos democratas, equivale à promessa de um desdobramento que se repetirá. 

Não há nenhuma expectativa de que o aniversário da insurreição e sua memória trarão alguma união nacional. Os americanos discordam amplamente a respeito do que está sendo lembrado. E esse mais recente desentendimento grave, de maneira nada surpreendente, os dividiu ainda mais, de modo geral. 

As relações entre os partidos no Capitólio, já dificilmente idílicas antes da revolta, estão abismais. “A insurreição marcou um momento de mudança no Congresso”, afirma a deputada Cheri Bustos, democrata moderada do Estado de Illinois. “Agora, falta confiança, falta respeito.”  Alguns democratas se recusam a cooperar com qualquer republicano que tenha votado contra a certificação da eleição. Muitos democratas – e os poucos republicanos que se opõem a Trump – receberam ameaças de morte de apoiadores do ex-presidente. 

O vídeo de animação que Paul Gosar, do Arizona, postou no Twitter, em novembro, que mostrava ele matando a congressista democrata Alexandria Ocasio-Cortez, foi um dos exemplos mais sutis. Cheney e Kinzinger foram os únicos republicanos a apoiar a moção de censura dos democratas contra Gosar, o que deteriorou ainda mais as relações partidárias. 

Imparcialidade

Fora da política há mais esperança. Os imparciais processos que as várias centenas de revoltosos respondem contam como um ponto a favor para o sistema Judiciário. Os chefes de polícia que comandaram a inadequada defesa do Capitólio foram responsabilizados, e a segurança do edifício foi reforçada significativamente. Mas, infelizmente, isso é uma faca de dois gumes para pessoas como Cheri Bustos, que foi eleita para governar, e não para lutar. 

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Ela é um dos 25 deputados democratas deixando a política, uma decisão que ela atribui, em parte, à insurreição. “Meu marido trabalhou como policial por quatro décadas – e ele disse que as coisas não vão melhorar”, afirmou. “Falamos disso com meus três filhos. Nenhum deles acha que eu deveria concorrer novamente.” /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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