Watergate, 50 anos: Jornalistas que revelaram caso comparam a corrupção nas eras Nixon e Trump

Bob Woodward e Carl Bernstein pensaram que Richard Nixon definia a corrupção. Então veio Donald Trump

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Por Carl Bernstein e Bob Woodward
Atualização:

Em seu celebrado Discurso de Despedida, de 1796, o ex-presidente George Washington advertiu que a democracia americana era frágil. “Homens ardilosos, ambiciosos e sem princípios serão capazes de subverter o poder do povo e usurpar para si as rédeas do governo”, alertou ele.

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Dois de seus sucessores — Richard Nixon e Donald Trump — demonstram a chocante genialidade da visão do nosso primeiro presidente.

Como repórteres, analisamos Nixon e escrevemos sobre ele por quase meio século, período no qual acreditamos com forte convicção que os Estados Unidos jamais voltariam a ter um presidente que espezinharia o interesse nacional e minaria a democracia por meio de uma audaciosa busca de seu próprio interesse pessoal e político.

E então Trump apareceu.

Donald Trump caminha até a Igreja de St. John, perto da Casa Branca, após mandar forças de segurança reprimirem protestos antirracistas em Washington, em 1° de junho. Foto: Doug Mills/ The New York Times

O cerne da criminalidade de Nixon foi sua bem-sucedida subversão do processo eleitoral — o elemento mais fundamental da democracia americana. Ele alcançou esse objetivo por meio de uma massiva campanha de espionagem política, sabotagem e desinformação, que permitiu a ele literalmente determinar quem seria seu oponente na eleição presidencial de 1972.

Com um orçamento secreto de apenas US$ 250 mil, uma equipe de operadores de Nixon tirou dos trilhos a campanha do senador Edmund Muskie, do Maine, o pré-candidato democrata com mais possibilidade de se eleger.

Nixon disputou a eleição, então, contra o senador George McGovern, democrata da Dakota do Sul amplamente considerado um candidato muito mais fraco, e ganhou dele em uma lavada histórica, com 61% dos votos, vencendo em 49 Estados.

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Ao longo das duas décadas seguintes, a conduta ilegal de Nixon foi exposta gradualmente por meios de imprensa, pela Comissão Watergate do Senado, por procuradores-especiais, por uma investigação de impeachment na Câmara dos Deputados e, finalmente, pela Suprema Corte. Em decisão unânime, a corte ordenou Nixon a entregar suas gravações secretas de áudio, o que condenou sua presidência.

Esses instrumentos da democracia americana finalmente impediram Nixon, forçando a única renúncia de um presidente na história dos EUA.

O presidente Richard Nixon e sua esposa, Pat, desfilam na Pennsylvania Avenue após sua segunda posse, em 20 de janeiro de 1973. Foto: Charles Del Veechio/ Washington Post

Donald Trump não apenas procurou destruir o sistema eleitoral por meio de falsas alegações de fraude eleitoral e de uma intimidação pública sem precedentes de autoridades eleitas, mas também tentou impedir a transferência pacífica de poder para seu sucessor devidamente eleito, algo inédito na história dos EUA.

Os instintos diabólicos de Trump exploraram uma vulnerabilidade na legislação. De maneira altamente incomum e específica, a Lei de Contagem Eleitoral, de 1887, determina que, às 13 horas de 6 de janeiro, nos anos que se seguem a eleições presidenciais, a Câmara e o Senado realizam uma sessão conjunta. O presidente do Senado, nesse caso o vice-presidente Mike Pence, preside a sessão. Os votos eleitorais dos 50 Estados e do Distrito de Colúmbia são então abertos e contados.

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Este momento singular da democracia americana é a única declaração oficial e certificação de quem venceu a eleição presidencial.

Em uma artimanha que superou até a imaginação de Nixon, Trump e um grupo de advogados, apoiadores e assessores da Casa Branca conceberam uma estratégia para bombardear o país com afirmações falsas, de que a eleição de 2020 foi fraudada e que Trump era o verdadeiro vencedor. Eles colocaram o foco na sessão de 6 de janeiro de 2021 como a oportunidade de reverter o resultado da eleição. Anteriormente à data crucial, advogados de Trump circularam memorandos com alegações fabricadas de que, na suposta fraude eleitoral, haviam sido contados votos de pessoas mortas, menores, presidiários e moradores de outros Estados.

Donald Trump reclamou vitória eleitoral sobre Joe Biden ainda em 4 de novembro de 2020, ao lado de Mike Pence, Karen Pence e Melania Trump. Foto: Jabin Botsford/ The Washington Post

Assistimos em absoluta consternação Trump declarar persistentemente que o verdadeiro vencedor era ele. “Nós ganhamos”, afirmou ele em 6 de janeiro de 2021, em um discurso proferido na Elipse. “Ganhamos de lavada. Foi uma lavada.” Ele pressionou Pence publicamente e implacavelmente para declará-lo vencedor em 6 de janeiro de 2021.

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Naquele dia, motivada pela retórica de Trump e sua óbvia aprovação, uma multidão ocupou o terreno do Capitólio e, em um ato estarrecedor de violência coletiva, invadiu o edifício arrombando portas e estilhaçando janelas — e depredou o próprio recinto parlamentar, onde os votos eleitorais estavam prestes a ser contados. A multidão foi então atrás de Pence — tudo para evitar a certificação da vitória de Joe Biden. Trump não fez nada para impedi-los.

Segundo a definição legal, tratou-se claramente de sedição — conduta, discurso ou organização que incita as pessoas a se amotinar contra a autoridade que governa o país. Desta maneira, Trump se tornou o primeiro presidente sedicioso na nossa história.

Apoiadores de Trump atacam forças de segurança durante invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021. Foto: Stephanie Keith/ REUTERS

Antes da sedição de Trump

Cinquenta anos antes, Nixon esteve determinado em minar e subverter o sistema americano de eleições livres, a pedra angular que mantém nossa democracia unida.

Em 1971, Howard Hunt, ex-operador da CIA, e G. Gordon Liddy, ex-agente do FBI, foram contratados para trabalhar para a Casa Branca em uma “Unidade de Investigações Especiais” — conhecida por lá como os “Encanadores”. Sua missão primeira: evitar vazamentos das autoridades do governo Nixon aos meios de imprensa.

Uma das ações mais notórias dos Encanadores de Nixon foi o arrombamento do consultório do psiquiatra Daniel Ellsberg, que tinha vazado os Papéis do Pentágono para o The New York Times e o The Washington Post. Hunt e Liddy realizaram o assalto. A esperança, não cumprida, era encontrar informações comprometedoras sobre Ellsberg ou mostrar que ele tinha ligações com comunistas.

Com o início da campanha, Hunt e Liddy foram deslocados para o comitê de reeleição de Nixon para coordenar operações de espionagem e sabotagem.

Gordon Liddy deixa instituição correcional federal em Danburry, em setembro de 1977, onde cumpriu pena por envolvimento no escândalo de Watergate. Foto: Fred R. Conrad/The New York Times

Memorandos descobertos durante as investigações do caso Watergate identificaram Muskie como o “Alvo A”, com o objetivo de “impingir nele algumas feridas políticas que não apenas reduzam suas chances de indicação — mas que também o prejudiquem como candidato, caso ele seja indicado”.

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Em um dos mais intensos e eficientes esforços de espionagem, Elmer Wyatt, operador da campanha de Nixon, foi plantado na pré-campanha de Muskie e se tornou motorista do senador. Wyatt recebia US$ 1.000 por mês para entregar cópias de documentos sensíveis que transportava entre o gabinete de Muskie no Senado e seu comitê de pré-campanha presidencial. Os resultados foram espetaculares. O volume de informações era tão grande que Wyatt, que atendia pelo codinome de “Ruby I”, alugou um apartamento no meio do caminho entre os dois escritórios equipado com uma máquina de xerox.

Cópias dos documentos de Muskie eram enviadas para o comitê de reeleição de Nixon, onde o coordenador da campanha, John Mitchell, ex-procurador-geral, tirou vantagem da transparência quase total que os documentos lhe deram a respeito da pré-campanha de Muskie: “itinerários, memorandos internos, rascunhos de discursos e documentos de posicionamento”, de acordo com o relatório final da Comissão Watergate do Senado, publicado em 1974. A campanha de Nixon também recebia documentos sobre estratégias em relação a debates, arrecadação de recursos, funcionários, operações de imprensa e disputas internas.

Elmer Wyatt, o espião de Nixon na campanha do rival Edmund Muskie. Foto: Courtesy of Verona Scott

Enquanto isso, Gordon Strachan, o mais graduado conselheiro político do chefe de gabinete da Casa Branca, HR “Bob” Haldeman, e Dwight Chapin, secretário responsável pela agenda do presidente e considerado um filho por ele, contrataram Donald Segretti, um antigo amigo da época da faculdade e ex-advogado do Exército, para implementar iniciativas de sabotagem.

Segretti, por sua vez, contratou 22 indivíduos para infligir as tais “feridas políticas” e recebeu por isso US$ 77 mil em cheques e dinheiro. Herbert Kalmbach, advogado pessoal de Nixon, realizava os pagamentos secretamente, com restos de fundos de campanha.

Em março de 1972, um operador de Segretti circulou uma carta falsificada, impressa no papel timbrado de Muskie, com alegações de perversidades sexuais envolvendo os pré-candidatos democratas rivais Henry “Scoop” Jackson e Hubert Humphrey. Custou apenas US$ 20 para reproduzir o cabeçalho, mas Chapin disse a Segretti que os US$ 20 foram um investimento sensacional e haviam levantado “o equivalente a US$ 10 mil a US$ 20 mil em benefícios para a campanha de reeleição do presidente”, de acordo com o relatório da Comissão Watergate do Senado.

O advogado pessoal de Richard Nixon, Herbert Kalmbach, depõe ao Comitê do Senado americano sobre Watergate, em julho de 1973. Foto: The New York Times

Nos meses de campanha pelas primárias democratas, provocações, piquetes e cartazes com a frase “M-U-S-K-I-E soletram Perdedor” o acompanharam. Segretti e seus operadores roubaram sapatos deixados para serem engraxados pelo pré-candidato e sua equipe do lado de fora de seus quartos de hotel antes de eventos da pré-campanha. Nos comboios, chaves de carros eram discretamente surrupiadas quando os motoristas se afastavam para fumar. Os sapatos e as chaves eram jogados em lixões fora das cidades, impossibilitando à pré-campanha manter a agenda prevista e funcionar sem percalços. Os operadores de Segretti relataram, “Enfurecemos gloriosamente sua equipe e os aturdimos consideravelmente”.

Muskie e sua equipe ficaram assustados. Em um comício em New Hampshire, discursando sobre a carroceria de uma picape, o pré-candidato expressou o quão irritado ficou com a publicação de calúnias sobre sua mulher, Jane. Um editorial fofoqueiro publicado pelo conservador William Loebin no jornal Manchester Union Leader, intitulado “Jane do Papai”, sugeriu que a mulher do senador bebia, fumava e gostava de contar piadas sujas. O texto também foi publicado pela revista Newsweek. Mais ou menos na mesma época, Muskie aparentou admitir o uso da palavra “canuck”, um termo derrogatório para definir canadenses, em uma carta falsificada redigida por um assessor da Casa Branca de Nixon.

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Sob ataque, Muskie chorou publicamente em uma parada da pré-campanha em New Hampshire. David Broder, repórter-sênior de política do The Washington Post, escreveu em uma reportagem publicada na primeira página que Muskie não se conteve em três momentos, “e lágrimas escorreram pelo seu rosto”.

Gota a gota, tudo isso contribuiu para a implosão da pré-candidatura de Muskie. Posteriormente, Muskie afirmou, “Nossa campanha foi constantemente assolada por vazamentos, perturbações e fabricações, mas jamais conseguimos determinar quem eram os responsáveis”.

Atacado pela campanha de Nixon em 72, Muskie (à direita) virou secretário de Estado dos EUA anos depois. Na foto, ele aparece ao lado do premiê de Zimbábue, Robert Mugabe, e o secretário-geral da ONU Kurt Waldheim, em agosto de 1980. Foto: Chester Higgins, Jr./The New York Times

“Havia muitos atores na montagem do Watergate”, escreveu Haldeman, o chefe de gabinete de Nixon, em seu livro de 1978, “The Ends of Power(Os fins do poder), “e por trás deles todos escondia-se a sombra sempre presente do presidente dos EUA”.

Haldeman acrescentou, “Essa tendência de atacar com força em demasia (…) refletia uma crença no conceito de que os fins justificam os meios — e uma uma enorme disposição para aceitá-lo”. Em outras palavras, Nixon acreditava que sua sobrevivência política era um “bem maior”, pelo qual valia a pena subverter a vontade do povo.

“Um homem não acaba quando é derrotado. Ele acaba quando desiste”, escreveu Nixon em uma nota para si mesmo, em 1969. Tratava-se de um clássico aforismo nixoniano — adotado por Trump, que foi derrotado na eleição de 2020, mas, armado de falsidades e um esquema para se manter no poder, recusou-se a desistir.

As manobras de Donald Trump

Mesmo antes da eleição, Trump manobrava implacavelmente alegando que o sistema eleitoral seria manipulado contra ele, estabelecendo os fundamentos para o assalto contra a legitimidade do resultado da votação que ele empreende até hoje.

Em 22 de junho de 2020, por exemplo, pouco mais de quatro meses antes do dia da eleição, ele tuitou: “MILHÕES DE VOTOS PELO CORREIO SERÃO IMPRESSOS POR PAÍSES ESTRANGEIROS E OUTROS. SERÁ O MAIOR ESCÂNDALO DOS NOSSOS TEMPOS!”.

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Às 2h30 de 4 de novembro de 2020, enquanto a contagem dos votos solidificava o caminho de Biden para a vitória no Colégio Eleitoral, Trump disse ao país e ao mundo: “Trata-se de uma fraude contra o povo americano. Isso é constrangedor para o nosso país. Estávamos nos posicionando para vencer esta eleição. Francamente, nós vencemos sim esta eleição.”

Três dias depois, a Associated Press e os outros meios de comunicação declararam Biden vitorioso. Trump, porém, afirmou: “Todos nós sabemos por que Joe Biden está se apressando para posar falsamente como vencedor e por que seus aliados na mídia estão se esforçando tanto para ajudá-lo: eles não querem que a verdade seja exposta. O fato é simplesmente que esta eleição está longe de acabar (…)”

“Nossa campanha começará a entrar com processos na Justiça para defender nossa posição. (…)”

Eu não descansarei até que o Povo Americano tenha a contagem de votos honesta que merece e que a Democracia exige.

Donald Trump, sobre o resultado das eleições 2020

Ao contrário de Nixon, Trump desempenhou sua subversão amplamente em público. Ele atacou a legitimidade do processo eleitoral de 2020 em palanques de comícios, na Casa Branca e em seu popular perfil no Twitter. No entanto, perdeu 61 ações contestatórias, mesmo em cortes de juízes que ele havia nomeado.

Depois do dia da eleição, Trump iniciou um ataque mais letal contra o processo eleitoral.

“EM 6 DE JANEIRO, VEJO VOCÊ EM WASHINGTON!”, tuitou Trump em 30 de dezembro de 2020, de Mar-a-Lago, onde passava os feriados de fim de ano.

Estrategista-chefe do ex-presidente há muito tempo, Steve Bannon, que ora agradava a Trump, ora não, entrou na onda em uma conversa por telefone com ele, naquele mesmo dia.

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“Você tem de retornar para Washington, marcar um retorno dramático hoje mesmo”, disse-lhe Bannon, segundo reportagem do livro de Woodward e Robert Costa, “Peril” (Perigo).

Steve Bannon se apresentou a um juiz federal nesta quarta-feira, 15, após não responder a intimação do Comitê da Câmara que investiga invasão do Capitólio. Foto: Win McNamee/Getty Images/AFP

“Você tem que tirar o Pence da p… do resort de ski e trazê-lo para cá hoje. Trata-se de uma crise”, afirmou Bannon, referindo-se ao ex-vice-presidente, que estava de férias em Vail, Colorado.

“Vamos enterrar Biden em 6 de janeiro”, afirmou Bannon.

Se os republicanos fossem capazes de envenenar o suficiente a vitória de Biden em 6 de janeiro de 2021, afirmou Bannon, seria difícil ele governar. Milhões de americanos o considerariam um presidente ilegítimo.

“Vamos assassiná-la no berço. Assassinaremos a presidência de Biden no berço”, afirmou Bannon.

O ataque de Trump contra a legitimidade de Biden incluiu uma torrente de declarações públicas, trapaças jurídicas e um foco constante na perturbação da certificação de 6 de janeiro de 2021 no Congresso.

Em um memorando de duas páginas “reservado e confidencial”, de 2 de janeiro de 2021, o advogado ultraconservador John Eastman expressou em seis pontos como Trump seria declarado vencedor. Tratava-se do rascunho de um golpe de Estado. O memorando afirmava que “sete Estados transmitiram listas duplas de votos eleitorais”.

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O advogado John Eastman gesticula enquanto discursa a apoiadores de Trump no Elipse, em Washington, ao lado de Rudy Giuliani, antes do discurso do presidente para contestar a certificação pelo Congresso dos EUA dos resultados da eleição presidencial dos EUA de 2020, em 6 de janeiro de 2021. Foto: Jim Bourg/ REUTERS

Se apenas um único Estado tivesse uma lista dupla de votos eleitorais, isso já provocaria caos na certificação do Congresso.

O senador republicano Mike Lee, de Utah, um dos mais fortes apoiadores de Trump, ficou chocado quando leu o memorando que a Casa Branca lhe havia enviado. Votos eleitorais alternativos seriam uma notícia nacional importantíssima se fossem verdade. Ele jamais havia ouvido falar nisso. Lee lançou sua própria investigação e passou dois meses conversando com Trump e autoridades da Casa Branca e telefonando para parlamentares de legislaturas controladas pelos republicanos. Não havia nenhuma lista alternativa. Lee ficou surpreso que o memorando falacioso tivesse vindo de Eastman, um professor de direito e ex-escrevente do ministro da Suprema Corte Clarence Thomas.

Lee por fim compareceu ao recinto do Senado e, com uma cópia da Constituição nas mãos, afirmou que havia passado um tempo enorme analisando a questão e não encontrou “nem mesmo um” exemplo de alguma lista de votos eleitorais alternativa.

O papel de Rudy Giuliani

O ex-prefeito de Nova York Rudy Giuliani, advogado de Trump e seu confidente, fez alegações similares de manipulação e fraude eleitoral massiva. Giuliani redigiu suas alegações em extensos memorandos enviados para o senador Lindsey Graham, que era íntimo de Trump. Quando Graham investigou as alegações, não encontrou nenhuma consistência. “Não contem comigo”, afirmou Graham dramaticamente no recinto do Senado.

Na noite de 5 de janeiro de 2021, véspera do processo formal de certificação eleitoral, Trump encontrou-se com Pence. Ele insistiu para que Pence, enquanto presidente da sessão de certificação, descartasse votos eleitorais de Biden.

Pence afirmou que não tinha poder para isso.

Mesmo contrariando a vontade de Trump, vice-presidente Mike Pence certificou a vitória de Joe Biden. Foto: Erin Schaff/Pool via REUTERS

“E se as pessoas disserem que você tem?”, perguntou-lhe Trump, apontando para o lado de fora da Casa Branca, onde uma enorme multidão de seus apoiadores se concentrava. Sua vibração e suas vozes em megafones se faziam ouvir através das janelas do Salão Oval.

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“Eu não desejaria que ninguém tivesse essa autoridade”, afirmou Pence.

“Mas não seria interessante ter esse poder?”, perguntou o então presidente dos EUA.

“Não”, afirmou Pence. “Estarei lá apenas para abrir os envelopes.”

“Você não compreende, Mike, você pode fazer isso. Não vou mais querer ser seu amigo se você não o fizer.” Trump aumentou o tom da voz e intensificou sua ameaça. “Você nos traiu. Eu fiz você. Você não é nada”, disse ele. “Sua carreira estará acabada se você não fizer isso.”

Depois que Pence deixou a Casa Branca naquela noite, Trump convocou um grupo de assessores de imprensa ao Salão Oval. Ele tinha aberto uma porta próxima à Mesa do Resolute. Fazia menos de zero grau do lado de fora, e o ar gelado soprava no gabinete. Indiferente aos assessores que tremiam de frio, Trump parecia regozijar com os berros de seus apoiadores ao relento.

“Não é o máximo?”, afirmou ele. “Amanhã será um grande dia. Faz tanto frio e mesmo assim eles estão aí fora, milhares deles. Há bastante fúria por lá agora.”

Trump ameaçou impulsionar pré-candidatos para desafiar congressistas republicanos nas primárias de seu partido que apoiassem a certificação de Biden como presidente.

À 1h de 6 de janeiro de 2021, Trump tuitou: “Se o vice-presidente @Mike_Pence nos ajudar, ganharemos a Presidência (…) Mike pode mandar ver!”.

Posts no Twitter e em outras redes sociais se inflamaram com ameaças de violência: Vou matar essa pessoa, atirar nessa pessoa. Vou enforcar esse cara.

Às 10 horas, Trump telefonou para Pence, em mais uma tentativa de convencê-lo. “Mike, você pode fazer isso, estou contando com você para fazê-lo. Se você não fizer isso, é porque escolhi o homem errado quatro anos atrás.”

No comício “Stop the Steal” (Parem o roubo) de Trump, naquela manhã gelada, milhares de pessoas se reuniram na Elipse. “Vamos conseguir justiça pelo combate”, afirmou Giuliani enquanto a multidão vibrava em aprovação.

Manifestantes se reúnem em Washington para protestos convocados por Donald Trump para impedir certificação da vitória de Biden pelo Congresso. Foto: Mark Peterson/The New York Times

Trump continuou: “Jamais desistiremos. Jamais recuaremos. (…) Vocês nunca retomarão nosso país com fraqueza”, berrou ele à multidão, de cima do palanque.

“Sei que todos aqui logo marcharão para o edifício do Capitólio, para fazer nossas vozes serem ouvidas pacificamente e patrioticamente”, afirmou Trump.

Determinada, uma multidão de mais de mil pessoas marchou para o Capitólio. Pouco depois das 14 horas, a turba ficou violenta. Janelas começaram a se estilhaçar, portas foram arrombadas. Um ataque em um motim sem precedentes transcorreu plenamente. “Enforquem Mike Pence”, eles cantavam, enquanto avançavam pelos corredores do Congresso. Alguns trajavam fantasias extravagantes. Do lado de fora, uma plataforma de enforcamento era improvisada para pendurar Pence pelo pescoço.

Na Casa Branca, Trump assistia à insurreição pela TV. Um ano depois, a Comissão Especial da Câmara sobre o Ataque de 6 de Janeiro havia avançado bastante em sua investigação: 86 pessoas foram intimadas para depor, 500 testemunhas foram entrevistadas e provas abundantes sobre o papel de Trump na insurreição foram reunidas — e os membros da comissão prometeram ir além.

Apoiadores de Donald Trump invadem o congresso americano em 6 de janeiro de 2021. Foto: Shannon Stapleton/ REUTERS

Um mundo de teorias da conspiração

Nixon e Trump criaram um mundo conspiracional no qual a Constituição dos EUA, as leis do país e suas frágeis tradições democráticas servem para ser manipuladas ou ignoradas, em que oponentes políticos e meios de comunicação são “inimigos”, onde o poder investido nos presidentes tem poucas ou nenhuma rédea.

Nixon e Trump foram outsiders, implacáveis em sua ambição, dados a paranoias e indignados com a maneira com que eram tratados. Trump surgiu nos bairros afastados da cidade de Nova York, não em Manhattan. Nixon vinha de Yorba Linda, Califórnia, não de San Francisco ou Los Angeles. Mesmo depois de conquistar o mais poderoso cargo no mundo, esses dois homens foram profundamente inseguros.

Nossas conclusões decorrem da cobertura de Nixon e Watergate por meio século. E de cobrir Trump por mais de seis anos — Woodward nos livros “Medo”, de 2018, “Raiva”, de 2020 e “Peril” (Perigo), com Robert Costa, de 2021; Bernstein como repórter e comentarista da CNN, fazendo análises a respeito de Trump, seu comportamento e sobre o que isso significou de 2016 até hoje. Bernstein noticiou em novembro de 2020 que 21 senadores republicanos não respeitavam Trump de nenhuma maneira e o desprezavam privadamente, apesar de expressar apoio pelo então presidente em público. Depois da reportagem ser publicada pela CNN — informando os nomes dos 21 senadores — outro senador republicano afirmou que este número era próximo a 40.

O caso Watergate começou para nós quando fomos pautados para trabalhar em equipe, no The Washington Post, sobre uma ocorrência policial em que cinco assaltantes haviam sido presos ao invadir o Comitê Nacional do Partido Democrata, em um prédio de escritórios do complexo Watergate, em 17 de junho de 1972.

Apesar de ter nos custado meses de trabalho para determinar a ligação do caso com Nixon, a equipe da Casa Branca de então e o comitê de reeleição do ex-presidente iniciaram imediatamente um ataque sem precedentes contra o sistema Judiciário, lançando uma abrangente operação-abafa envolvendo mentiras, pagamentos por silêncio e ofertas de perdões presidenciais para encobrir seus crimes.

O complexo de prédios de Watergate, em Washington, onde funcionava o Comitê Nacional do Partido Democrata. Foto: Ken Feil / The Washington Post

Em uma gravação de áudio de 23 de junho de 1972, seis dias depois da prisão dos assaltantes no Watergate, o chefe de gabinete Haldeman disse a Nixon, “O FBI não está sob controle (…) a investigação deles está levando a algumas áreas produtivas neste momento, porque eles estão conseguindo rastrear o caminho do dinheiro.”

Haldeman afirmou que ele e Mitchell tinham um plano para que a CIA alegasse que segredos de segurança nacional seriam colocados em perigo caso o FBI não parasse a investigação do caso Watergate.

Nixon aprovou o plano e ordenou que Haldeman telefonasse para o diretor e o vice-diretor da CIA. “Seja durão”, orientou-lhe o ex-presidente. “É assim que eles jogam, e é assim que vamos jogar.”

Essa gravação foi revelada em 5 de agosto de 1974 e foi lamentavelmente chamada de “prova concreta”. Na verdade, seu conteúdo não era pior do que o de outras gravações reveladas anteriormente. Naquele momento, o Congresso e a opinião pública já estavam cansados de Nixon e indignados com o ex-presidente.

John Dean, conselheiro do gabinete de Nixon, foi encarregado inicialmente de abafar e acobertar as atividades em Watergate. Ele encontrou um colaborador disposto no subprocurador-geral Henry Petersen, que era diretor da divisão criminal do Departamento de Justiça, um cargo poderoso. Petersen concordou em garantir que Earl Silbert, o procurador encarregado de investigar Watergate, não investigasse Segretti e outros envolvidos.

John Dean (de costas para a câmera) presta depoimento ao Comitê do Senado americano sobre Watergate, em 25 de junho de 1973. Foto: George Tames/ The Ne York Times

De acordo com o relatório do Senado sobre o caso Watergate, “Petersen orientou Silbert a não investigar as relações entre Segretti, Kalmbach, Chapin e Strachan porque ‘não queria vê-lo investigando as relações entre do (ex-)presidente e seu advogado, nem o fato de que o advogado do (ex-)presidente pode estar envolvido em alguma, pensei, atividade ilegítima de campanha em nome do (ex-)presidente’”.

O acobertamento contaria com o equivalente — em termos práticos — a uma bênção oficial.

Em suas memórias, publicadas cinco anos depois de deixar a Casa Branca, Haldeman afirmou que Nixon estava por trás de todo o subterfúgio.

“Percebi que muitos problemas no nosso governo vinham não apenas de fora, mas também de dentro do Salão Oval — e, mais profundamente, até mesmo de dentro da personalidade de Nixon”

HR “Bob” Haldeman

“Logo me dei conta de que este presidente tinha de ser protegido de si mesmo. Repetidas vezes recebi ordens mesquinhas e vingativas”, escreveu Haldeman sobre Nixon. Uma delas foi, ‘Ninguém da imprensa põe os pés no Air Force One’ (…) Ou, depois de um senador fazer um discurso contra a Guerra do Vietnã: ‘Quero esse bastardo vigiado 24 horas’. E era assim quase todos os dias.”

Em uma das entrevistas que Woodward realizou com Trump para seu livro “Raiva”, ele perguntou ao então presidente, “O que o senhor aprendeu sobre si mesmo?”.

Trump suspirou sonoramente. “Sou capaz de lidar com mais coisas do que as outras pessoas.”

“As pessoas não querem meu sucesso (…) Nem os RINOs, nem mesmo os RINOs querem que eu seja bem-sucedido.” (RINOs é acrônimo de “republicanos só no nome”).

“Tenho uma oposição que ninguém mais tem. E tudo bem. Foi assim por toda minha vida. Sempre foi assim. E é assim — minha vida inteira foi assim.”

Donald Trump se recusa a cumprimentar a líder democrata Nancy Pelosi durante ida ao Congresso, em fevereiro de 2020. Foto: Leah Millis / REUTERS

Nixon também se ressentia de seus inimigos.

“Lembrem-se de que continuaremos aqui e sobreviveremos aos nossos inimigos”, afirmou Nixon no Salão Oval em 14 de dezembro de 1972, no mês seguinte à sua reeleição. “E também jamais esqueçam: A imprensa é o inimigo. A imprensa é o inimigo. A imprensa é o inimigo. O establishment é o inimigo. Os professores são o inimigo. Os professores são o inimigo. Escrevam isso em um quadro negro cem vezes e nunca esqueçam disso.”

Como é bem conhecido, Trump afirmou publicamente que a imprensa era um inimigo e era inimiga do Estado. Certa vez ele disse a Woodward durante uma entrevista, “Na minha opinião, vocês são inimigos do povo”. Depois que Bernstein revelou uma das reuniões secretas de Trump, o ex-presidente o chamou de “frouxo” e “idiota degenerado”.

Uma questão paira: Por que dois homens que ocuparam o cargo mais graduado do país empreendem tais assaltos à democracia?

Medo de perder e ser considerado um perdedor é um tema comum a Nixon e Trump.

Richard Nixon se despede de seu gabinete um dia após renunciar ao cargo, em 9 de agosto de 1974. Foto: Mike Lien/ The New York Times

Em uma entrevista ao Washington Post de 2015, Trump disse considerar que sempre tinha sido bem-sucedido em seus negócios imobiliários, livros, em seu programa de TV e no golfe.

Questionado a respeito de temer a possibilidade de perder algum dia, Trump afirmou, “Não tenho medo disso, mas odeio o conceito”.

“O que o senhor odeia a respeito disso?”

“Odeio o fato disso ser algo totalmente desconhecido”, afirmou ele, dando uma clássica resposta trumpiana totalmente confiante e acrescentando, “Se algum medo existe, é o medo do desconhecido, porque não conheço essa sensação”.

Em uma entrevista em 31 de março de 2016, quando Trump estava prestes a assegurar a indicação do Partido Republicano para disputar a presidência, surgiu a questão a respeito de como ele define o poder.

Trump afirmou:

“O verdadeiro poder — mas não quero usar essa palavra — é o medo”.

O período pós-Nixon

Depois de Nixon renunciar e iniciarmos nosso segundo livro, “Os últimos dias”, sobre o último ano de Nixon na presidência, fomos entrevistar o então senador Barry Goldwater, do Arizona, indicado do Partido Republicano para disputar a presidência em 1964. Goldwater sempre foi tido como a consciência dos republicanos.

Em seu apartamento, ele nos serviu uísque e tirou da estante um volume do diário que havia ditado por anos para sua secretária. Ele começou a ler o verbete do dia 7 de agosto de 1974. A gravação da dita “prova concreta” acabara de ser revelada, dois dias antes, mostrando que Nixon tinha pedido para a CIA suspender a investigação do FBI sobre o caso Watergate com base em falsas preocupações de segurança nacional. Estava claro que Nixon sofreria impeachment e seria formalmente indiciado pela Câmara dos Deputados. A dúvida era o Senado.

O líder republicano no Senado, Hugh Scott, da Pensilvânia, o líder republicano na Câmara, John Rhodes, do Arizona, e Goldwater foram convidados para se reunir com Nixon na Casa Branca. Eles ficariam a sós com o presidente no Salão Oval. Nenhum assessor ou advogado de Nixon estaria presente.

Goldwater tomou assento diante de Nixon, que sentava-se à sua mesa. Posteriormente, ele registrou no diário que Nixon parecia calmo, quase sereno. Goldwater achou que o presidente parecia ter acertado um buraco de golfe na primeira tacada. O desapontamento, porém, era perceptível na voz de Nixon.

“Pedimos que Barry seja nosso porta-voz”, afirmou Scott.

“Senhor presidente, isso não é nada agradável, mas o senhor quer saber qual é a situação, e a coisa não vai bem”, afirmou Goldwater.

O senador Barry Goldwater, do Arizona, indicado do Partido Republicano para disputar a presidência em 1964 Foto: James K.W. Atherton/ The Washington Post

“Quantos vocês acham que ficariam ao meu lado? Meia dúzia?”, perguntou Nixon.

Goldwater registrou no diário que se questionou sobre a possibilidade de haver algo de sarcasmo na fala de Nixon, porque ele precisaria de 34 votos no Senado para permanecer no cargo. Uma maioria de dois terços, ou 67 senadores, era necessária para removê-lo, de acordo com a Constituição.

“Entre 16 e 18″, afirmou Goldwater, muito menos que os 34 de que Nixon precisava.

“Eu diria 15, talvez”, afirmou Scott. “Mas a coisa está feia, e eles não são muito firmes.”

“Bota feia nisso”, retrucou o ex-presidente.

Em um julgamento no Senado, afirmou Goldwater, “Não há muitos que apoiariam o senhor se chegássemos a isso”.

Goldwater nos disse que naquele momento decidiu ser absolutamente direto em sua mensagem. “Contei focinho a focinho hoje — e não consegui encontrar mais do que quatro votos firmes ao seu favor; e apenas entre os sulistas mais velhos. Alguns estão muito preocupados com o que tem acontecido e estão indecisos — e eu sou um deles.”

Na noite seguinte, Nixon apareceu em cadeia nacional de TV e anunciou que renunciaria às 12 horas da sexta-feira, 9 de agosto de 1974.

Pessoas se aglomeram para ler a notícia da renúncia de Nixon, em 8 de agosto de 1974, em banca de jornais perto da estação central de Nova York  Foto: Neal Boenzi/The New York Times

Mais de um ano depois, o Senado lançou uma investigação extraordinária bipartidária a respeito do caso Watergate, decidindo por 77 votos a zero estabelecer uma comissão de investigação.

Quarenta e oito anos depois, o clima político havia mudado radicalmente. Somente dois deputados federais republicanos — Liz Cheney (Wyoming) e Adam Kinzinger (Illinois) — juntaram-se aos democratas para aprovar por 222 votos a 190 o estabelecimento de uma comissão especial para investigar o ataque de 6 de janeiro de 2021 contra o Capitólio. O Comitê Nacional Republicano declarou oficialmente os eventos que levaram ao ataque como “discurso político legítimo” e aprovaram moções de censura contra Cheney e Kinzinger.

Outra nuance dominante de personalidade que caracteriza tanto Nixon quanto Trump: Ambos percebem o mundo pelo prisma do ódio.

Woodward visitou Trump em 30 de dezembro de 2019 em Mar-a-Lago, para entrevistar o então presidente. A Câmara, dominada pelos democratas, havia acabado de aprovar seu impeachment, por ele ter segurado ajuda militar à Ucrânia no mesmo momento em que pedia para o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, investigar os Bidens.

Depois de uma hora em que Trump defendeu seu pedido a Zelenski, o diretor de mídia de Trump, Dan Scavino, juntou-se à entrevista. Trump pediu que Scavino abrisse seu laptop e exibisse um vídeo de seu discurso sobre o Estado da União de 2019. Em vez das palavras de Trump, uma música de elevador modernosa tocava no vídeo, enquanto a câmera empreendia longas tomadas trafegando entre congressistas que assistiam e escutavam o presidente.

O senador Bernie Sanders, de Vermont, ocupou o quadro em primeiro lugar, parecendo entediado.

Trump assistia o vídeo atrás de Woodward e estava agitado.

“Eles me odeiam”, afirmou o presidente. “Você está vendo ódio!”

A câmera então parou na senadora Elizabeth Warren, a progressista de Massachusetts. Ela ouvia o presidente com uma expressão insossa, sem expressar nenhum tipo de emoção.

Na sequência veio uma tomada da deputada Alexandria Ocasio-Cortez. Sua expressão era absolutamente neutra.

“Ódio! Olha esse ódio!”, afirmou Trump.

A câmera parou na então senadora Kamala Harris por um bom tempo. No ano seguinte, ela seria escolhida para a vice na chapa de Biden. Sua expressão era plácida e elegante.

“Ódio!”, berrou Trump a poucos centímetros do pescoço de Woodward. “Olha esse ódio! Olha esse ódio!”

Foi um momento memorável. Um psiquiatra poderia dizer que tratou-se de uma projeção do ódio do próprio Trump em relação aos democratas. Sua insistência na visão de “Ódio!” não se confirmava nas imagens no computador de Scavino. Evidentemente, muitos democratas o odiavam e eram oponentes francos e furiosos à sua presidência. Mas este espetáculo que Trump apresentou foi inesquecível e bizarro.

No dia em que Nixon renunciou à presidência, 9 de agosto de 1974, ele pronunciou seu discurso de despedida na Sala Leste da Casa Branca. Ele não seguiu nenhum roteiro. Sua esposa, Pat, e suas duas filhas acompanhadas dos maridos estavam ao seu lado. Nixon falou a respeito da maneira como os pais dele foram incompreendidos e seguiu com mais ressentimentos.

O secretário do tesouro, William E. Simon (esquerda), o secretário de Estado, Henry Kissinger, e sua esposa Nancy acompanham o discurso de despedida de Nixon  Foto: Mike Lien/The New York Times

Então subitamente, como se tivesse encontrado uma mensagem maior, ele sorriu gentilmente e ofereceu ao público seu conselho final. “Sempre se lembrem que as pessoas podem odiar vocês — mas aqueles que odeiam não vencem a não ser que você passe a odiá-los, e então você se destrói.”

Pareceu um momento ofuscante de autoentendimento. O ódio tinha sido a marca de sua presidência. Mas no fim Nixon chegou a se dar conta de que o ódio foi o veneno, o motor de sua própria destruição.

Nixon aceitou o perdão completo pelo caso Watergate oferecido pelo ex-presidente Gerald Ford 30 dias depois de sua renúncia. Sempre que alguém perguntava para Ford por que ele não insistiu que Nixon admitisse explicitamente que havia cometido crimes, Ford afirmava confiante que tinha com ele a resposta.

“Está aqui na minha carteira”, ele respondia, enquanto tirava da carteira um pedaço de papel dobrado e meio amassado, com um resumo da decisão da Suprema Corte sobre o caso Burdick versus EUA, de 1915. Os ministros do tribunal decidiram que um perdão “carrega imputação da culpa; sua admissão e reconhecimento”.

Ao aceitar o perdão, portanto, Nixon confessou, afirmava Ford. “Isso sempre foi muito reconfortante para a minha consciência.”

Richard Nixon (canto direito) e Gerald Ford (penúltimo à direita) caminham ao lado dos ex-presidentes George Bush, Ronald Reagan e Jimmy Carter durante a inauguração de uma biblioteca de Nixon em Yorba Linda, Califórnia, em 1990. Foto: Gary Cameron/ REUTERS

Em 1977, apenas três anos depois de deixar a presidência, Nixon concedeu uma série de entrevistas na TV para o jornalista britânico David Frost. O ex-presidente recebeu US$ 600 mil. A transmissão da primeira entrevista sobre o caso Watergate atraiu 45 milhões de espectadores — um recorde de audiência para uma entrevista política até hoje.

Nixon afirmou que decepcionou o povo americano, mas que não havia obstruído a Justiça. “Não considero uma operação de acobertamento, minha intenção não era acobertar. Permita-me dizer, se eu tivesse intenção de acobertar, acredite em mim, eu teria conseguido.”

Um ano depois, em seu livro de memórias “RN”, ele continuou sua guerra contra a história. “Minhas ações e omissões, ainda que lamentáveis e possivelmente indefensáveis, não eram motivo para impeachment.”

O presidente, acrescentou ele na entrevista a Frost, tem plena autoridade e é incapaz de violar a lei. “Quando o presidente faz isso, resulta que o ato não é ilegal”, afirmou Nixon.

“Quando o presidente faz isso, resulta que o ato não é ilegal”

Richard Nixon

Em no livro posterior, “In the Arena” (Na arena), de 1990, Nixon intensifica suas negações, alegando ser um mito que ele tenha ordenado pagamentos em troca de silêncio.

Uma gravação de áudio de uma reunião de 21 de março de 1973, no entanto, prova que ele ordenou que John Dean conseguisse esse dinheiro 12 vezes.

O ex-senador Sam Ervin, que presidiu a Comissão Watergate do Senado, ofereceu o diagnóstico definitivo. Nixon e seus assessores eram orientados por “uma volúpia por poder político”.

Manifestantes do lado de fora da Casa Branca, em 8 de agosto de 1974.,comemoram a renúncia de Richard Nixon, anunciada no dia e efetivada no dia seguinte  Foto: Don Hogan Charles/The New York Times

Apesar de Ervin ter morrido 32 anos antes de Trump se tornar presidente, o rótulo de “volúpia por poder político” também se aplica.

Trump nunca foi um estrategista coerente, mas tem capacidade de ser um poderoso propagandista. Ele teceu uma série de narrativas afirmando que venceu em 2020, apesar de não haver nenhuma evidência que as comprove.

Mais de um ano depois da posse de Joe Biden, pesquisas mostram que apenas 21% dos republicanos afirmam acreditar que Biden é o presidente legítimo dos EUA.

Entre 74% e 83% dos republicanos que negam a vitória de Biden foram influenciados pelas falsas alegações de Trump a respeito de uma fraude eleitoral massiva. Seu pensamento prova que a retórica e a cartilha de Trump os convenceram.

As alegações de Trump sempre são apresentadas com uma consistência inabalável e emocionada, sem transparecer hesitações. À medida que a eleição de 2024 se aproxima, Trump parece posicionar-se para disputar novamente a presidência.

Tanto Nixon quanto Trump foram prisioneiros solícitos de suas compulsões para dominar, conquistar e manter poder político valendo-se virtualmente de qualquer recurso. Ao render-se tão profundamente a esses impulsos obscuros, eles definiram as duas eras mais perigosas e perturbadoras da história americana.

Como alertou Washington em seu Discurso de Despedida, mais de 225 anos atrás, líderes sem princípios são capazes de ocasionar “despotismo permanente”, “a ruína da liberdade pública” e “motim e insurreição”. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*Carl Bernstein e Bob Woodward são coautores de “Todos os homens do presidente” e “Os últimos dias”. O artigo acima foi publicado como novo prefácio na edição comemorativa dos 50 anos de “Todos os homens do presidente”.

Bob Woodward é editor-associado do Washington Post, onde trabalha desde 1971. Ele compartilhou dois Prêmios Pulitzer, o primeiro em 1973 pela cobertura do escândalo de Watergate com Carl Bernstein, e o segundo em 2003, como principal repórter da cobertura dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.

Carl Bernstein é coautor de “Todos os homens do presidente” e “Os últimos dias”. Seu livro mais recente é “Chasing History: A Kid in the Newsroom” (Caçando a história: um garoto na redação”. Ele também é analista político da CNN.

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