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A redescoberta de Chico da Silva: obra do visionário artista brasileiro ganha exposição em Nova York

Artista indígena famoso na década de 1960, que teve sua originalidade questionada, volta a ter sua arte valorizada com ajuda de curadores que estão voltados à produção afro-indígena

Por Kevin Draper e Rory Smith

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Francisco da Silva foi um dos primeiros artistas brasileiros de ascendência indígena alçados à fama internacional. Na década de 1960, suas pinturas, repletas de criaturas fantásticas e folclóricas, entrelaçadas em lutas renhidas e em campos alucinatórios de cores e padrões vibrantes, tornaram-se extremamente populares no Brasil e em outros países. Uma de suas obras chegou a ilustrar a capa da lista telefônica de Fortaleza, onde o artista – conhecido simplesmente como Chico – viveu e fundou um ateliê coletivo pioneiro e controverso.

O artista Chico, em 1972, com uma de suas pinturas. Foto: David Kordansky Gallery/The New York Times

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Quando morreu, em 1985, vítima do alcoolismo, Chico se encontrava em um estado de desamparo, tendo sido praticamente esquecido pelo mundo da arte, que o celebrara inicialmente por sua visão “primitiva” singular e depois questionara a autenticidade de seu trabalho. Agora, uma nova onda de interesse e pesquisa está reavaliando a obra de Chico e reabrindo discussões sobre autoria, autonomia artística e exotização que permeiam sua história.

Em 27 de outubro, a primeira grande exposição individual de seu trabalho em Nova York foi inaugurada na Galeria David Kordansky, com cerca de 25 pinturas e obras em papel do período entre os anos 1960 e o início dos anos 1970. Essa mostra é produzida depois da apresentação de Chico na feira de arte Independent em Nova York no ano passado, organizada pela galeria paulista Galatea. Além disso, a maior exposição retrospectiva de sua carreira até hoje, Chico da Silva e o Ateliê do Pirambu, esteve na Pinacoteca de São Paulo de quatro de março a 28 de maio, e foi até 29 de outubro na Pinacoteca do Ceará, em Fortaleza. “À medida que o mundo da arte começa a reconhecer a importância da indigeneidade, queremos destacar a obra e o legado de Chico da Silva, que, da maneira mais visionária, abriu caminho para uma nova geração de artistas indígenas que começa a surgir no Brasil”, afirmou Kordansky.

Artistas indígenas brasileiros contemporâneos, como Denilson Baniwa e Jaider Esbell, destacaram a influência direta da obra de Chico. Esbell se suicidou aos 41 anos em 2021, enquanto seu trabalho estava sendo exposto na Bienal de São Paulo.

Graham Steele, negociante e colecionador de arte, disse que as circunstâncias trágicas que envolveram os últimos anos de vida desses dois artistas merecem uma análise mais minuciosa: “A morte de outro artista indígena em razão de pressões semelhantes mostra que há muitas lições importantes a tirar da história de Chico e de como esses artistas, de certa forma, são explorados.” Em parceria com a negociante de arte Alexandra Mollof, Steele foi o curador da exposição na Galeria David Kordansky, em Manhattan, que permanece em cartaz até 16 de dezembro.

'Sem Título' (1966), de Chico da Silva, o artista indígena conhecido como Chico. Foto: Ding Musa/David Kordansky Gallery/The New York Times

Como informa o catálogo que acompanha a exposição, Chico da Silva nasceu em 1910 (embora algumas fontes sugiram o período entre 1922 e 1923). Filho de pai peruano e mãe indígena do Ceará, na região Nordeste do Brasil, passou sua juventude na floresta amazônica. Quando criança, acompanhava o pai, que era barqueiro, nas jornadas pelo rio, onde a flora e a fauna exuberantes alimentavam sua imaginação artística.

Depois que o pai morreu em consequência de uma picada de cascavel, Chico se mudou com a mãe para Fortaleza. Lá, o artista autodidata começou a pintar pássaros nas paredes externas de casas de pescadores usando carvão, giz e matéria orgânica triturada como pigmento.

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Em 1943, o crítico de arte e artista suíço Jean-Pierre Chabloz, que imigrara para o Brasil, viu um dos murais e procurou seu autor. Chabloz estabeleceu um vínculo de amizade com Chico e passou a lhe fornecer materiais de pintura e telas. O zoológico estilizado de dragões, serpentes, peixes e aves das obras de Chico, representado em intricadas constelações em pontilhismo, proliferou nos anos subsequentes. Chabloz passou a expor essas obras e vendê-las para colecionadores no Rio de Janeiro, em São Paulo e em várias cidades europeias.

Ao promover a obra de Chico em revistas de arte, Chabloz o caracterizou como “gloriosamente primitivo, divinamente analfabeto e, acima de tudo, um artista excepcional que, até então, só carecia de uma oportunidade favorável para revelar seus dons extraordinários”.

Considerando-se que Chabloz era um homem branco europeu daquela época, Mollof admite que ele tinha uma mente aberta: “Seu olhar vê a singularidade e o poder da obra de Chico e acho que ele faz um esforço genuíno para apoiar essa arte. É evidente que, em algum momento, ele também lucrou com isso.”

Para Steele, Chabloz foi tanto o explorador de Chico quanto seu defensor: “Quando consideramos os debates sobre o ‘bom selvagem’ e os modernistas que buscam pureza de expressão em alguém que vem de fora, essa apreciação enorme é uma faca de dois gumes. De certa forma, é o mesmo que atribuir um rótulo a Chico.”

À medida que o mundo da arte começa a reconhecer a importância da indigeneidade, queremos destacar a obra e o legado de Chico da Silva, que, da maneira mais visionária, abriu caminho para uma nova geração de artistas indígenas que começa a surgir no Brasil.

David Kordansky, galerista

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De 1948 a 1960, Chabloz voltou a morar na Europa e, por falta de recursos, Chico diminuiu sua produção artística. Sua arte ganhou força novamente quando Chabloz retornou ao Brasil e conseguiu um emprego para Chico no museu de arte da Universidade Federal do Ceará em 1961. Nesse período, Chico recebeu um salário e criou cerca de 40 telas para a instituição ao longo de três anos. Chabloz também apresentou Chico ao seu primeiro marchand, Henrique Bluhm.

Com o aumento da demanda por suas obras, Chico começou a treinar assistentes e estudantes da favela do Pirambu, em Fortaleza, para pintar seguindo seu estilo característico. Nessa época, seu trabalho atraiu a atenção do historiador e crítico de arte Clarival do Prado Valladares, que o incluiu em uma exposição coletiva de arte naïf no pavilhão brasileiro da Bienal de Veneza em 1966. Chico também participou da Bienal de São Paulo de 1967.

O Ateliê do Pirambu, como era chamado o estúdio de Chico, tornou-se um fenômeno local – e alvo de críticas. As pinturas de Chico eram vendidas nas ruas, sendo encontradas em mercados locais e em casas de toda a região. Em um artigo de 1969 publicado no jornal O Povo, Chabloz rompeu publicamente com Chico, argumentando que a produção em larga escala do ateliê havia diluído a força de sua obra e depreciado seu valor artístico. A resistência do establishment artístico coincidiu com o aumento do consumo de álcool e as internações de Chico em instituições psiquiátricas na década de 1970, das quais ele nunca se recuperou totalmente.

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Por que (ter assistentes) é aceitável para Andy Warhol, mas não para Chico da Silva?

David Kordansky, galerista

Acompanhando a obra de Chico, a atual exposição retrospectiva em cartaz no Brasil apresenta as criações dos cinco principais aprendizes que trabalharam com ele: Chica (Francisca, filha de Chico), Babá, Ivan, Garcia e Claudionor. Cada um deles acabou estabelecendo um ateliê independente e desenvolvendo uma obra autoral.

“A discussão da obra de Chico da Silva sempre girou em torno da dúvida sobre sua originalidade. É muito mais interessante pensar que ele desenvolveu certa economia dentro do bairro de Fortaleza, aonde as pessoas de diversos lugares iam para conhecer pinturas de criaturas fantásticas. Ele se tornou parte do imaginário coletivo”, destacou Jochen Volz, diretor da Pinacoteca de São Paulo.

A curadora brasileira Keyna Eleison, que cresceu no Rio e frequentemente encontrava as pinturas de Chico adornando casas, vê sua prática comunitária como autenticamente afro-indígena: “É claro que o ateliê foi demonizado por Chabloz, porque representava uma espécie de movimento de libertação de Chico, e todo movimento de libertação precisa ser coletivo.”

O uso de assistentes foi considerado radical e “sem precedentes no modernismo brasileiro”, observou Kordansky, embora seja uma prática comum na arte contemporânea e tenha raízes no Renascimento. “Por que é aceitável para Andy Warhol, mas não para Chico da Silva?”, questionou, referindo-se à linha de produção no estúdio de Warhol, conhecido como The Factory.

Paralelamente à exposição, a Pinacoteca de São Paulo adquiriu pela primeira vez uma obra de Chico para enriquecer a apresentação da história da arte brasileira em sua coleção permanente. A Tate, em Londres, e o Centre Pompidou, em Paris, também fizeram aquisições recentes.

Mencionando um panteão de modernistas brasileiros – incluindo Lygia Pape, Lygia Clark, Hélio Oiticica e Mira Schendel –, Steele disse que as obras de Chico estão começando a ser inseridas nesse contexto: “Isso está se concretizando agora de uma forma interessante. Há um interesse mais profundo em explorar a história de Chico e como esta reflete as questões de racismo e classismo.”

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