Documentário explora o transtorno de identidade dissociativa

A condição, que antes era conhecida como transtorno de personalidade múltipla, afeta cerca de 1% da população

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Por Jane E. Brody
Atualização:

Marshay, de 28 anos de idade, refere-se a si mesmo como “menininha” e diz que se sente como se tivesse nascido há seis anos. Sua mãe acha que algo ruim deve ter acontecido com ela quando ainda era muito criança, mas não sabe o que ocorreu. Quando pergunta à filha porque acha que ainda é uma criancinha, ela responde: “não me lembro de nada. Não quero crescer. Quero continuar criança”.

O cérebro de Marshay periodicamente busca um refúgio, uma persona onde se sentir imune a algum abuso terrível que aparentemente ela sofreu no começo da vida. E a jovem possui outras identidades, que “emergem” quando ocorrem eventos desencadeadores e ela necessita de identidades alternativas para se sentir segura.

Ilustração de Gracia Lam/The New York Times 

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Marshay é uma das muitas pessoas que sofrem de um transtorno de identidade dissociativa, tema de um novo documentário chamado Busy Inside. Ela faz parte do grupo de 1% da população com esse transtorno psiquiátrico que outrora era chamado transtorno de personalidade múltipla, famosamente retratado há décadas em filmes como As três faces de Eva e Sybil. Ele afeta principalmente mulheres.

O novo documentário mostra os desafios de conviver com a doença. Mas muitas das pessoas afetadas nunca procuram ajuda médica até, e salvo se, sua vida se tornar ingovernável.

Karen Marshall, terapeuta de Marshay, também convive com esse transtorno e disse-me que 17 personalidades diferentes habitam sua psique e emergem de tempos em tempos. Ela sofreu graves abusos psíquicos e físicos quando criança nas mãos da sua mãe e sentiu um tremendo alívio quando ela morreu “e não podia mais me ferir”. Segundo ela, seu próprio trauma, e como aprendeu a controlá-lo, a ajudaram a se tornar uma eficiente terapeuta.

O Dr. David Spiegel, psiquiatra da Stanford University, que deu a esse tipo de transtorno o nome mais atual, explica que “desenvolvemos nossa identidade na infância e se você é abusado por alguém que deveria amá-lo e protegê-lo, procura se desprender dessa situação abusiva. Em casos extremos, você assume outras identidades. E isso se transforma num transtorno”. O hipocampo, parte do cérebro que lida com o estresse, se deteriora, e o efeito é uma extrema sensibilidade aos hormônios do estresse”, explica o médico.

No começo da vida, quando o cérebro não consegue enfrentar um problema, ele o coloca numa pequena caixa”, diz ele. E mais tarde, quando não consegue lidar com alguma coisa, isto é colocado em outro compartimento do cérebro e assim por diante, o que resulta no fato de algumas pessoas desenvolverem personalidades distintas, cada uma delas se mantendo no controle por algum tempo.

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Uma mulher no filme chamada Sarah, que tem sete ou oito identidades, descreve seu trauma de infância, estar num porão terrivelmente gelado com pouca roupa e dois homens a agarrando e outros de pé rindo. “Posso ver isso acontecendo, mas não consigo parar. O monstro sempre retorna, destruindo tudo”, diz ela.

No documentário, a terapeuta Karen Marshall encoraja Marshay a se aceitar como uma mulher adulta com muitas facetas, afirmando que: "todos nós temos papéis diferentes e de certo modo todos nós usamos máscaras diferentes".

Para a pessoa que sofre com esse transtorno, quando uma identidade alternativa predomina, ela perde a noção do tempo e não tem nenhuma lembrança do que a outra personalidade fez quando estava ocupando o espaço. Karen Marshall disse que uma mulher que ela tratou tinha uma personalidade alternativa que era uma ladra e quando retornava à sua identidade principal, não tinha a mínima ideia de como havia adquirido todas as coisas que havia em seu apartamento.

O transtorno de identidade dissociativa costuma não ser diagnosticado e com frequência é diagnoticado incorretamente como depressão ou ansiedade e consequentemente tratado erroneamente, diz o Dr. Spiegel. Quando indivíduos com esse transtorno reconhecem o problema, em média, são necessários seis anos para eles saberem o que está causando os sintomas, se buscarem ajuda, afirma o médico.

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Algumas pessoas com esse transtorno nunca se tratam e de alguma maneira conseguem ter uma vida normal até que alguma coisa muito estressante faz com que suas identidades alternativas apareçam e corrompam sua capacidade de funcionar. Por exemplo, disse-me Marshall, uma pessoa no filme atuava muito bem como executiva de uma empresa há muitos anos, até que um trauma familiar deixou-a tão nervosa que suas identidades emergiram, personalidades muito hostis e devastadoras emergiram e ela não conseguiu mais exercer seu trabalho.

Segundo o Dr. Spiegel, algumas pessoas que convivem com esse transtorno “temem um tratamento ou se mostram ambivalentes a respeito. Não acreditam que estou aqui para ajudá-las porque, com base na sua história, acham que a pessoa que querem ajudá-las potencialmente irá lhes causar danos”.

As identidades alternativas podem surgir ao mesmo tempo como se a pessoa fosse duas, uma se opondo à outra. Elas desenvolvem papéis especializados, aparecendo em determinadas circunstâncias, segundo o médico. Por exemplo, uma identidade“protege” contra outra que se mostra agressiva ou nociva. A identidade protetora pode pensar: “vou permanecer aqui enquanto fulana estiver circulando”, disse ele.

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Como Marshall explicou, as pessoas têm uma ou duas identidades que agem como guardiães, mantendo as outras no seu interior.

No tratamento, a identificação e enfatização dos valores e crenças básicas da pessoa, a idade adulta dela, permitirá a ela aprender a dominar as identidades que são perturbadoras ou encrenqueiras, disse Marshall.

Sua abordagem do tratamento não visa necessariamente livrar as pessoas de suas identidades alternativas, salvo se for esse o seu desejo. Pelo contrário, disse, elas podem aprender a usar essas identidades construtivamente e viver uma vida normal como adulto numa sociedade.

Também é útil reconhecer as circunstâncias que levam uma identidade inquietante a surgir e temporariamente tomar o lugar da personalidade adulta. Marshall disse ter aprendido que “se estou cansada, doente, ou estressada, acabo me dividindo” e uma personalidade infantil vêm à tona.

Como no transtorno de estresse pós-traumático, as pessoas com múltiplas identidades têm flashbacks e revivem constantemente os abusos sofridos. “Não assisto a filmes sobre abuso infantil”, disse Marshall. Ao tratar o transtorno de identidade dissociativa, disse ela, “procuro levar as 'criancinhas' que foram traumatizadas a se conscientizarem de que estão seguras, que não serão machucadas novamente”.

O Dr. Richard P. Kluft, psiquiatra em Bala Cynwyd, Pensilvânia, concentra sua terapia “no apoio carinhoso, estimulante e reconfortante” que ajuda os pacientes a se sentirem seguros. “A mente cura com a dedicação amorosa”, afirmou. Tanto ele como Spiegel com frequência usam a hipnose para ajudar na terapia e ensinam os pacientes como se acalmarem com a auto-hipnose entre as sessões.

No caso de pacientes relutantes, Luft diz que ele acolhe todas as partes da sua personalidade, ajudando as suas várias identidades a se simpatizarem e se respeitarem.

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De acordo com Karen Marshall, à medida que as pessoas com múltiplas identidades começam a melhorar, “elas conseguem analisar o que estão sentindo e vivenciando. E aprendem a usar suas identidades alternativas construtivamente, conseguindo viver em sociedade como uma pessoa adulta”, o que aos poucos ela vem aprendendo a fazer. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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