PUBLICIDADE

Estudiosa diz ter descoberto mensagem oculta de Catarina de Aragão em livro sobre joias

A doutoranda Vanessa Braganza usou um processo que ela chamou de ‘Wordle moderno primitivo’ para decodificar a desobediência da primeira esposa de Henrique VIII

Por Jennifer Schuessler
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Há muito tempo, esse é um tesouro misterioso e sedutor do Museu Britânico: uma coleção de desenhos de joias e outros luxuosos ornamentos, encomendados durante o reinado de Henrique VIII ao artista Hans Holbein, que foi o pintor da corte por algum tempo. Alguns dos desenhos são cifras, ou símbolos codificados, combinando as iniciais do rei e as de suas muitas amantes. Alguns dos mais elaborados nunca foram decodificados.

Vanessa Braganza, doutoranda em inglês, que decodificou uma mensagem da "desobediência" de Catarina de Aragão. Foto: Tom Jamieson/The New York Times

PUBLICIDADE

Este ano, enquanto finalizava um capítulo de sua dissertação, Vanessa Braganza, doutoranda em inglês na Universidade Harvard que se autodescreve como “detetive de livros”, ficou fascinada por um emaranhado de letras particularmente denso.

No fim daquela tarde, Braganza pensou que havia solucionado o enigma em seu caderno, por meio de um processo de tentativa e erro que comparou a um jogo de caça-palavras. Ela concluiu que a cifra continha as palavras HENRICVS REX - Henrique, o rei - e KATHERINE - sua primeira esposa, Catarina de Aragão.

Até aí, nada de extraordinário. Mas Braganza argumenta que o pingente não foi encomendado por Henrique, e sim por Catarina, no período em que ele tentava se divorciar dela para se casar com Ana Bolena, como uma poderosa afirmação de sua eterna promessa de ser sua única esposa e rainha. “É uma janela para os pensamentos de Catarina; simplesmente está lá, nos desafiando a enxergá-los”, afirmou a respeito do pingente.

A corte dos Tudor e suas intrigas cruéis já causavam fascinação muito antes da famosa trilogia Wolf Hall, de Hilary Mantel, ou de Six, musical pop feminista da Broadway (que reimagina as malfadadas esposas de Henrique VIII como um esquadrão do tipo Spice Girls e reivindica seu protagonismo na história).

Mesmo fora das páginas de O Código Da Vinci, gerações de acadêmicos estudaram a maneira como os códigos e as cifras moldaram quase todos os aspectos da cultura renascentista (como mostrou uma exposição de 2014 na Biblioteca Folger Shakespeare, em Washington), desde a diplomacia e a guerra até o surgimento do sistema postal e a própria arte da interpretação literária.

E o tema não é apenas acadêmico: estudiosos renascentistas ajudaram a inspirar o processo de decodificação usado na Segunda Guerra Mundial, enquanto as técnicas militares de criptologia foram usadas como ferramentas de análise literária.

Publicidade

O trabalho de Braganza faz parte do que pode ser visto como uma onda mais feminista, já que os acadêmicos vêm cada vez mais analisando como a criptografia e outras formas de comunicação secreta preservam a voz perdida das mulheres. “O que é especialmente empolgante, e muitas vezes comovente, é o fato de Vanessa estar se concentrando em vozes que teriam sido silenciadas ou caricaturadas”, ressaltou James Simpson, acadêmico literário de Harvard e um dos orientadores da dissertação de Braganza.

Algumas cifras femininas são bem conhecidas. Elizabeth e Maria: Primas Reais, Rainhas Rivais, recente exposição na Biblioteca Britânica, inclui uma análise de cartas cifradas escritas pela rainha Maria Stuart, da Escócia, além de mensagens codificadas usadas para enredá-la em um complô para assassinar Elizabeth I, que resultou na decapitação de Maria.

Mas também foram feitas novas descobertas: no ano passado, um pesquisador do Castelo de Hever, na Inglaterra, usou radiografias para revelar inscrições apagadas em um livro de orações que pertencera a Ana Bolena, que revelaram uma rede de segredos femininos ao longo de gerações, desafiando os esforços de Henrique para destruir tudo que se associava a ela.

Estudiosos também examinaram as mensagens femininas codificadas em bordados, em miniaturas, na decoração e até mesmo na cor do fio de seda usado para selar cartas e protegê-las de curiosos. “Não é surpresa que as mulheres tenham agido de maneira incomum e criativa nesse período, porque realmente precisavam operar fora dos canais normais para transmitir suas mensagens”, disse Heather Wolfe, bibliotecária associada e curadora de manuscritos da Biblioteca Folger Shakespeare.

Caderno de Vanessa Braganza mostra como ela decodificou a cifra feita por Hans Holbein com os nomes de Henrique VIII e sua primeira mulher, Catarina de Aragão. Foto: Tom Jamieson/The New York Times

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Desembaraçar um intrincado monograma do século 16 não se compara a decifrar códigos militares alemães na Segunda Guerra Mundial; segundo Braganza, basta notar o que se esconde à vista de todos. O tema de seu trabalho final de graduação foi a palavra “cifra” nas peças de Shakespeare, e, durante a pós-graduação, Braganza se interessou pelas cifras em si.

Sua primeira descoberta relacionada ao tema foi em 2019, em uma feira de livros antigos em Londres. Ela contou que andava pelos corredores da feira, irritada e com fome, quando avistou uma intrincada decoração estampada na capa de um volume antigo. Imediatamente, reconheceu a imagem como o monograma cifrado de lady Mary Wroth, contemporânea de Shakespeare considerada a primeira escritora de ficção da Inglaterra. Wroth também tivera um caso escandaloso com o primo, o terceiro conde de Pembroke, transformado em ficção em seu romance de dois volumes, Urania. Cinco anos antes, Braganza vira uma foto da cifra - que entrelaça as iniciais dos nomes ficcionais dados por Wroth a si mesma e ao conde - na capa de um manuscrito encadernado de uma das peças de Wroth, dado de presente ao amante.

A biblioteca pessoal de Wroth fora destruída por um incêndio, e nenhum volume sobrevivera. Mas lá, desconhecido do vendedor, parecia estar um remanescente, exibindo o mesmo símbolo codificado de seu amor pelo homem que morrera sem reconhecer os filhos que tiveram juntos. “Era um livro que não deveria existir”, comentou Braganza. (O volume, uma biografia de Ciro, o Grande, da Pérsia, agora pertence à Biblioteca Houghton, em Harvard.)

Publicidade

Foi outro momento de puro acaso que lhe apresentou a cifra Catarina/Henrique. Ao completar um capítulo sobre a proliferação das cifras na corte de Henrique, ela buscava imagens digitalizadas do Livro das Joias, como é conhecida a coleção de desenhos de Holbein que se encontra no Museu Britânico. Enquanto olhava distraidamente as imagens, um emaranhado oval específico a intrigou; ela começou com as letras que necessariamente estariam presentes, com base no traçado, e em seguida foi analisando outras possibilidades. Depois de uma tarde de trabalho, tinha a resposta: HENRICVS REX e KATHERINE.

Henrique teve três esposas chamadas Catarina, mas apenas Catarina de Aragão esteve na corte na época de Holbein. Quanto à grafia, embora o nome de Catarina fosse grafado de várias formas diferentes na época, Braganza informou que manuscritos assinados por Catarina mostram que ela o grafava com K e que, além disso, um retrato da jovem rainha mostra Catarina usando uma gargantilha com a letra “K” gravada na corrente. Depois de montar um dossiê repleto de provas, ela o mostrou a Simpson, que o considerou “totalmente convincente”.

Assim, por que Braganza acredita que Catarina, e não Henrique, encomendou o pingente? Com base nas datas em que Holbein esteve na corte, ela estima que o desenho tenha sido feito em torno de 1532, quando o complô de Henrique para encerrar seu casamento com Catarina (por não ter lhe dado um herdeiro homem) estava quase completo. Ele se casou com Ana secretamente em janeiro de 1533, e o casamento com Catarina foi anulado pelo arcebispo da Cantuária cinco meses depois, por isso Braganza afirma que Henrique não teria nenhum incentivo para encomendar o pingente. Mas Catarina, que morreu de causas naturais em 1536, nunca deixou de insistir que era a única esposa e rainha de Henrique. Braganza vê o pingente como um ato de “revelação de um amor secreto, que ajuda a entender Catarina como uma figura realmente desafiadora”.

Não está claro se o pingente ainda existe, ou se chegou a ser produzido, já que muitas joias do período foram derretidas, e o metal e as gemas, reutilizados. Mas Henrique é bem conhecido por ter tentado obliterar todos os vestígios de suas ex-esposas. Depois de Ana ter sido condenada por traição e decapitada em 1536, Henrique destruiu os registros dos processos na corte, suas cartas e a maioria de seus retratos, e também se dedicou a apagar de prédios públicos os muitos símbolos relacionados a ela, com sucesso apenas parcial.

Na capela da King’s College, em Cambridge, suas iniciais entrelaçadas podem ser vistas nas elaboradas decorações da divisória do coro. Mas em Hampton Court, em Londres, os visitantes ainda veem espaços vazios onde elas foram esculpidas, além de poucos exemplos que passaram despercebidos, ainda relacionados ao nó do amor verdadeiro.

Segundo Braganza, embora o pingente do Livro das Joias possa não mudar radicalmente a história, sugere que há muito mais vozes ainda por encontrar - das esposas de Henrique e de outras mulheres da época: “As cifras são assim - você as liberta e depois não consegue erradicá-las. Elas esperam para ser descobertas, séculos mais tarde.”

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.