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Kamchatka: ao pé dos vulcões, o remoto paraíso de uma península

No fim do verão, os abundantes rios de Kamchatka ficam vermelhos com a multidão de salmões nadando contra a corrente; é o único lugar que restou para a desova do salmão selvagem do Pacífico

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Por Eva Sohlman e Neil MacFarquhar

“Se alguém me disser que há no mundo um lugar melhor que Kamchatka, vai haver discussão!”, exclamou Alexei Ozerov, o exuberante vulcanólogo-chefe a respeito da encantadora península que pende da costa russa do Pacífico. Saltando de trás da escrivaninha bagunçada no Instituto de Vulcanologia e sismologia, ele apanhou um globo terrestre na prateleira e correu o dedo pelo “Anel de Fogo", a cadeia de vulcões que circula o Oceano Pacífico.

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De acordo com ele, apenas a Península de Kamchatka jaz diretamente acima das violentas forças tectônicas que produziram esses vulcões, dos quais ainda há cerca de 30 ativos em meio a mais de 300 deles. Entre quatro e sete entram em erupção todos os anos. Isso faz do lugar um ambiente único para os vulcanólogos e todos os demais, disse Ozerov.

A Unesco parece concordar. A organização internacional incluiu os vulcões de Kamchatka no patrimônio natural da humanidade por causa do que foi descrito como sua beleza excepcional, concentração e variedade. Com quase 1,3 mil quilômetros de comprimento, Kamchatka tem formato semelhante ao de um de seus abundantes peixes, com a cabeça apontando para baixo na direção do Japão e a cauda presa ao restante da Rússia.

No fim do verão, os abundantes rios de Kamchatka ficam vermelhos com a multidão de salmões nadando contra a corrente; é o único lugar que restou para a desova do salmão selvagem do Pacífico. Estima-se que 20 mil ursos marrons caminhem por suas florestas encantadas de bétulas e outras árvores, engordando à base de uma dieta do peixe.

Imensas águias-marinhas-de-Steller pairam nos céus enquanto, em alto mar, as orcas nadam e os caranguejos-reais alcançam proporções surpreendentes. Durante o breve intervalo entre a última neve de maio e a primeira neve de meados de setembro, uma rica variedade de plantas floresce. A vegetação apresenta uma inesperada exuberância tropical.

Florestas de esmeralda e a tundra esbranquiçada cobrem os pés das montanhas em meio a vulcões de tonalidades que variam entre o vermelho e o cinza, a maioria adornada com geleiras e neve. Campos alpinos explodem em flores e cores, incluindo rododendros amarelos, cassiopeias roxas, azaleias cor de rosa, brincos-de-princesa fúcsia e as estrelas brancas do aster de eschscholtz. Mais abaixo, os campos de grama selvagem podem ultrapassar a altura de três metros.

A Península de Kamchatka abriga uma variedade de animais, incluindo leões-marinhos, ursos, orcas e caranguejos-reais. Foto: Sergey Ponomarev para The New York Times

Os habitantes de Kamchatka insistem que é ali que começa a Rússia. Nos séculos anteriores, levava um ano para se chegar à península partindo de Moscou. Até hoje, não há estradas asfaltadas cruzando o pântano que a separa do restante da Rússia. O isolamento de Kamchatka foi diminuindo gradualmente, com alguma tensão entre a preservação de sua natureza e a exploração dos seus recursos naturais. Os visitantes procuram as paisagens naturais intocadas e a grande variedade de atividades externas - caminhada, pesca, rafting, surfe e montanhismo. No inverno, helicópteros transportam esquiadores e há uma corrida de cães que dura um mês.

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Há cerca de 600 quilômetros de estradas asfaltadas em Kamchatka, concentradas principalmente em torno das três cidades do sul, que abrigam 80% de uma população local cada vez menor - atualmente são pouco menos de 315 mil habitantes. Helicópteros caros são a única forma de se ter acesso a algumas das paisagens mais espetaculares.

O vulcão Mutnovsky é um pico famoso de mais de 2,3 mil metros. Ainda que localizado a apenas 60 quilômetros da capital, Petropavlovsk-Kamchatsky, para se chegar ao topo é necessário encarar uma acidentada viagem de quatro horas em estradas de terra, passando por campos de lava cheios de rochedos.

Um guia de vulcanismo usando uniforme camuflado, Sergei Y. Lebedev, foi o autor da ideia de construir veículos com pneus imensos para transportar turistas até o alto de diferentes vulcões. Ele acrescentou um eixo duplo ao seu modelo atual, uma minivan prateada da Toyota. 

Conforme a estrada vai subindo, mastros de nove metros aparecem em intervalos regulares ao longo da beirada. São medidores da altura formidável da neve do inverno, disse Lebedev Said. O guia Lebedev descreveu uma visita anterior, quando a montanha rugiu com ferocidade e, subitamente, na neblina, rochedos imensos se materializaram em um campo. “É tudo tão estranho e surpreendente que podemos chegar à beira de um vulcão ativo sem nem perceber", disse ele.

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Os vulcões formam a espinha dorsal da Península de Kamchatka e são os alicerces de suas maravilhas naturais. Caldeiras vulcânicas, fumarolas, lagoas vulcânicas e fontes termais decoram a paisagem. Nuvens empurradas por ventos de alitude da Sibéria ou do Pacífico tendem a ficar retidas nessa cordilheira, depositando prodigiosos volumes de neve e chuva que alimentam lagos e cerca de 14 mil rios e córregos.

O salmão habita essas águas o ano todo, mas milhões desse peixe retornam no verão para botar ovos. Em seguida, eles morrem, e suas carcaças são convertidas em uma biomassa que fecunda a fértil natureza ao redor. “Toda essa biomassa migra para diferentes áreas, em terra, nas florestas, nos campos, nos próprios rios.

É algo que define os contornos desse ecossistema", disse o professor de biologia Yevgeny G. Lobkov, da Universidade Estadual Técnica de Kamchatka. “Essencialmente, todo o ecossistema de Kamchatka é erguido com base nas carcaças do salmão que voltou para a desova.”

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Mas essa fartura natural também atrai problemas. Faz décadas que os animais são vítima de caçadores. O maior prêmio buscado pelos caçadores é o salmão e as suas ovas, que são o alicerce da economia local e um ingrediente fundamental na dieta de cerca de 14 mil habitantes indígenas.

De acordo com o preservacionista Sergey Vakhrin, fundador da organização sem fins lucrativos Country of Fish and Fish Eaters, o problema é que as empresas de pesca, políticos corruptos e agentes do policiamento, em conluio com a “máfia da caça”, exploram a natureza local em conjunto.

Ainda assim, os preservacionistas apontam para a farta safra de salmão apanhado legalmente no ano passado para indicar que a região está agora no rumo certo. Grandes empresas de pesca e algumas organizações turísticas, por exemplo, compraram direitos exclusivos de exploração de determinados estuários e rios, policiando as áreas para proteger seu investimento. Durante a Guerra Fria, Kamchatka era fechada a todos os estrangeiros e à maioria dos russos, o que ajudou a preservar a península.

Levando em conta sua encantadora beleza, não surpreende que Kamchatka atraia visitantes, mas o número de turistas considerado sustentável é hoje o foco de um intenso debate, pois um magnata russo quer construir um vilarejo turístico. Anunciado como “parque ecológico", o espaço ofereceria esportes de inverno e verão, incluindo caminhadas pela floresta para ver os vulcões Mutnovsky, Gorely e Vilyuchinsky. Os mil quartos propostos receberiam 400 mil visitantes ao ano, duas ou três vezes o número atual.

Os habitantes locais estão divididos. Para os empresários, a proposta traria empregos e daria mais impulso a uma indústria do turismo que ameaça estagnar. O vulcanólogo Ozerov também defendeu a ideia do vilarejo turístico. O parque ajudaria as pessoas a conhecerem seus amados vulcões, disse ele, e a proposta é menos prejudicial para a ecologia do que as propostas de desenvolvimento industrial.

Kamchatka é uma região rica em depósitos de minerais e metais como platina, ouro, prata, níquel e cobre. Gás e carvão também são explorados. Para alguns moradores, as minas representam uma ameaça maior do que um aumento nos turistas, especialmente levando em consideração que os inspetores ambientais raramente acessam as áreas de mineração.

Mas os investidores querem a propriedade das terras onde o projeto do hotel seria construído, o que exigiria tirá-la de uma reserva natural protegida. Para as organizações preservacionistas, isso estabeleceria um precedente perigoso. “Precisamos proteger não apenas Kamchatka, mas a natureza na Rússia em geral", disse Roman Korchigin, vice-diretor de ecoturismo e ensino da Reserva Kronotsky. “Se começarmos a mexer nas fronteiras, logo aceitaremos pretextos para fazer outras mudanças.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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