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‘Combate ao trabalho precário na IA deve estar na regulação da tecnologia’; leia entrevista

Desconhecida de muitas pessoas, atividade de treinamento de IA pode afetar qualidade dos sistemas de inteligência oferecidos pelas grandes empresas

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Por Guilherme Guerra
Atualização:
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Entrevista comRafael GrohmannPesquisador e autor do livro 'Trabalho por Plataformas Digitais', lançado pela Ed. Sesc em 2023

Por trás de cada serviço de inteligência artificial (IA), em especial do tipo generativa (como o ChatGPT e geradores de imagem como Midjourney), estão milhares de trabalhadores pelo mundo que treinam esses sistemas apontando quais textos, imagens e vídeos são corretos ou incorretos, tarefa equivalente a um “trabalho braçal” no mundo digital. Só depois desse processo é que as IAs ficam “inteligentes” e prontas para ir para o público.

“É um trabalho invisível”, explica Rafael Grohmann, professor-assistente na Universidade de Toronto, no Canadá, e pesquisador na organização internacional Fairwork, que fomenta relações de trabalho mais justas no mundo digital. Neste mês de dezembro, ele lançou o livro Trabalho por Plataformas Digitais, em parceria com a pesquisadora Julice Salvagni pela Ed. Sesc, onde fala sobre os diferentes tipos de ocupações na área — o que inclui os treinadores de IA.

Os treinadores de IA foram objeto de uma reportagem de janeiro de 2023 da revista americana Time, que revelou que a empresa OpenAI (dona do ChatGPT, DALL-E 2) desembolsou entre US$ 1,32 e US$ 2 por hora para cerca de 36 pessoas contratadas pela startup americana Sama, sediada em São Francisco na Califórnia — já os funcionários são de países como Quênia, Uganda e Israel. O contrato teve início em novembro de 2021 e terminou em fevereiro de 2022, a poucos meses de o ChatGPT ser lançado.

Segundo relatório deste mês de dezembro publicado pela Fairwork, a Sama foi acusada de ter problemas com pagamentos de horas extras a trabalhadores, supervisão excessiva da atividade dos colaboradores, práticas discriminatórias de gestão e uma “cultura do medo”, entre outras questões. Após consultoria da organização ao longo deste ano, a startup americana fez cerca de 24 mudanças em seu modelo de negócio, como implementação de salário mínimo, eliminação de horas extras não-remuneradas e extensão de contratos de trabalho. Ao final, a nota de “bem-estar” da Sama ficou em 5 de 10, diz a Fairwork.

Ao se colocar um trabalho decente como ponto de partida da regulação de IA, significa também fortalecer dados de boa qualidade no treinamento de IA

Rafael Grohmann, pesquisador e autor de 'Trabalho por Plataformas Digitais'

Grohmann, que trabalhou no relatório, defende que a atividade de treinador de inteligência artificial entre na mira das regulamentações da tecnologia, discutidas na União Europeia, Estados Unidos e Brasil. Segundo ele, a precarização desse trabalho tem impacto direto nas IAs, que necessitam de dados de qualidade para operar com precisão. “Ao se colocar um trabalho decente como ponto de partida da regulação de IA, significa também fortalecer dados de boa qualidade no treinamento de IA”, diz ele.

Ainda, o pesquisador defende incluir esses treinadores de inteligência artificial numa reforma mais ampla sobre o trabalho por plataforma (conhecida como “uberização” ou “gig economy”). Esse tipo de atividade inclui entregadores de apps de delivery, motoristas de automóveis por app, empregadas domésticas, influenciadores digitais e quaisquer outros trabalhadores que tenham sua atividade mediada por uma plataforma.

“Esse trabalho se espraia por todos os setores da sociedade”, diz Grohmann, que defende alternativas cooperativistas para essas atividades não se tornarem dependentes de poucas empresas. “Não dá para ter uma visão homogênea. Deve haver regulações para as empresas de cada setor, como as de entrega, de trabalho doméstico, de games, de educação. É um erro colocar tudo no mesmo pacote.”

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Abaixo, leia trechos da entrevista ao Estadão.

Trabalho de 'treinador de IA' é considerado precário pelas condições de trabalho, diz organização Foto: Martin San Diego/The Washington Post

O que é o trabalho por plataforma?

Durante os últimos anos, entrou em voga a palavra “uberização”. Mas o foco deve ser em “plataformização”, cuja definição é a crescente dependência de plataformas digitais para executar atividades de trabalho em diferentes setores, considerando plataformas não só como tecnologias e infraestruturas, mas também como empresas que controlam essas infraestruturas e detêm esses dados. Esse fenômeno afeta tanto as plataformas já projetadas para se trabalhar por meio delas, como as empresas de entrega ou as de treinamento de inteligência artificial, mas também plataformas que não foram desenhadas exatamente para isso, como as de mídias sociais. Aqui, podemos incluir como trabalhadores por plataforma os influenciadores, os criadores de conteúdo e até pessoas que vão usando as redes sociais para poder fazer negócios. Esse trabalho se espraia por todos os setores da sociedade.

E por que regular o trabalho por plataforma?

Os setores, como a aviação, precisam de algum tipo de regulação ou de parâmetros. No livro, defendemos que não dá para ter uma visão homogênea e padrão do trabalho por plataforma. Argumentamos que deve haver regulações para as empresas de cada setor, como as de entrega, as ligadas ao trabalho doméstico, de games, de educação. Porque todas essas passam a atuar a partir do trabalho por plataforma. É um erro a gente colocar tudo no mesmo pacote, senão acaba misturando abacaxis com bananas para poder regular atividades muito diferentes, mas com uma mesma coisa em comum: estão sendo mediadas por plataformas. A regulação é necessária, com algum parâmetro mínimo sobre essa relação de dependência entre trabalhadores e plataformas dessas empresas. Mas, de maneira mais ampla, a partir da noção de soberania digital, a gente não pode ficar dependente só dessas plataformas. Tem de se criar também um ecossistema que facilite a entrada de novos atores nesse cenário, e isso pode até ser parte da própria regulação. É algo mais amplo, porque a economia de plataformas tem já os oligopólios e monopólios. O Estado tem um papel também de promover alternativas locais e comunitárias que possam furar um pouco essa bolha da própria economia de plataformas.

Professor Rafael Grohmann é coautor do livro 'Trabalho por plataformas digitais' (Ed. Sesc, 2023), junto com Julice Salvagni Foto: Divulgação

É preciso ter uma atuação do Estado para oferecer alternativas?

O Brasil tem a faca e o queijo na mão para ser pioneiro. O País já tem um histórico de êxito em políticas de economia solidária, principalmente ligadas ao campo, e teve êxito em políticas de tecnologias livres e de cultura livre nos anos 2000. No Brasil, há parques tecnológicos, incubadoras populares, instituições como o Dataprev, que oferece infraestrutura digital pública para programas sociais estratégicos. Há algo aí para construir alternativas que não vão ser as dominantes em cada setor, mas podem ajudar, especialmente nas economias locais.

No passado, prefeituras já lançaram serviços próprios para competir com o Uber. Nenhuma dessas iniciativas pegou. Por que insistir nesse modelo?

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O erro é exatamente esse modelo, porque não é a solução da economia solidária, do cooperativismo. Acaba reproduzindo o que Evgeny Morozov chama de tecnossolucionismo, que é criar um aplicativo para resolver problemas sociais. Para mim, um exemplo no setor de entregas é a iniciativa chamada Coop Cycle, da Europa, que é uma federação de cooperativas de entregadores em que eles construíram um app para toda a Europa e o cliente é atendido pela cooperativa local baixando um só aplicativo. Já tentaram trazer isso algumas vezes para o Brasil, e os entregadores tiveram algumas discordâncias com o pessoal da Europa. Agora, a Federação de Cooperativas de Tecnologia da Argentina está encampando uma versão latino-americana disso, entendendo que o mesmo aplicativo foi desenhado, mas que foi projetado para um cenário de ruas francesas que não cabia para uma cidade como São Paulo, como Bogotá. Por isso, agora, estão reterritorializando a Coop Cycle. Para mim, o Estado, por exemplo, tem de investir em algumas infraestruturas que possam ser compartilhadas ao redor do Brasil, a partir de organizações já feitas, e não só criando elefantes brancos de aplicativos construídos sem base social nenhuma.

Houve algum consenso global nas discussões sobre regulamentação do trabalho por plataforma?

Existem parâmetros. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) fez no ano passado uma conferência tripartite para falar sobre isso. No projeto de 38 países da Fairwork, onde trabalho, conversamos com trabalhadores, empresas, governo e sindicatos. As disputas são para ver quais parâmetros importam, o que inclui remuneração, contratos e condições de trabalho, que envolvem saúde e segurança. Cada parte vai considerar uma remuneração justa ou quais as condições de trabalho são justas. Desde a pandemia, o Brasil teve um aprendizado coletivo em relação a esse tema, embora eu considere que essa regulação vai ser um fracasso por aqui.

Por que o sr. acredita que a negociação vai falhar no Brasil?

Existe uma pressão forte das empresas, desde antes das eleições, para que a regulação foque na previdência dos trabalhadores. É uma maneira de as empresas dizerem que estão comprometidas com a pauta e com a questão da saúde e segurança do trabalhador, sem efetivamente ter todos os direitos sociais de um trabalhador comum no Brasil. Isso é bom de alguma maneira para o Estado, que vai, sem se comprometer muito, arrecadar mais e ter uma base na previdência. Os trabalhadores não querem chegar nesse acordo, porque pode acabar se generalizando para outras categorias também. Como aconteceu na Inglaterra, há o trabalhador com todos os direitos e, na outra ponta, o autônomo verdadeiro. No meio, um autônomo falso, que é quase um trabalhador sem direitos. O perigo disso é normalizar uma precarização que vai chegar a todas as categorias. A tendência é aplicar essa mesma régua para todos os setores que atuam na economia de qualquer forma. Vai ser um tiro no pé, se o governo aprovar essa regulação desse jeito.

Projeto do governo de regular apps de entrega vai ser tiro no pé

Rafael Grohmann, pesquisador e autor de 'Trabalho por Plataformas Digitais'

Como que a inteligência artificial entra nessa discussão?

A automatização já está presente nas próprias plataformas, como no uso de algoritmos para definir uma tarefa, para contratar ou demitir alguém ou para demitir. Os processos de automatização vão acontecendo ao longo dos tempos. No livro, citamos o fenômeno da “heteromação”, que diz que, quanto mais a gente vai entendendo sobre a automação, mais vai tendo trabalho humano envolvido nesse processo. Um exemplo está nas empresas que prometem fazer entregas por drones. Mas os drones não vão vir na nossa janela. Vai ser preciso que tenham pessoas monitorando esses dispositivos. Ou há o caso da moderação de conteúdo das redes sociais, em que parte é feita por robôs e parte é feita por humanos. É um trabalho invisível. Essas questões de IA e trabalho aparecem como um tema secundário nas discussões na ONU, mas, para mim, é um tema fundamental no futuro do trabalho. Precisamos entender não só o sistema sendo substituído por máquinas, mas também quais os custos do treinamento de inteligência artificial ao redor do mundo. O ChatGPT foi construído com trabalho humano. A primeira rede neural foi construída a partir de 500 mil trabalhadores no braço da Amazon para treinamento, chamado Amazon Mechanical Turk. Isso não é algo novo. Nasceu em 2005, e a gente só passou a ter conhecimento sobre isso agora.

Esses trabalhadores de IA precisam entrar nessa discussão do trabalho por plataforma?

A maioria dos treinadores de dados para carros autônomos do mundo estão na Venezuela, terceirizados das grandes empresas. Como as empresas do Norte Global estão vivendo às custas de treinadores de dados do Sul Global e lucrando? É algo que ultrapassa a fronteira nacional, porque é invisível. No caso do Brasil, as pesquisas até o momento mostram que a maioria desses trabalhadores são mulheres que acumulam trabalho doméstico e reprodutivo e multiplicam isso no trabalho remoto por plataforma. Existe uma invisibilidade que as empresas não gostariam de reverter. Do ponto de vista da economia do trabalho e das políticas públicas, é importante reconhecer essa questão geopolítica mundial dos custos disso. Do ponto de vista nacional, é preciso entender quem são essas pessoas e que tipo de proteção social recebem. E, talvez mais importante, os trabalhadores não estão incluídos na discussão de regulação ou governança de inteligência artificial no Brasil ou no mundo.

Treinador de inteligência artificial é um trabalho invisível

Rafael Grohmann, pesquisador e autor de 'Trabalho por Plataformas Digitais'

Por que incluir esse trabalhador nas discussões de regulamentação de IA, que focam em riscos e ameaças tecnológicas?

Se a IA depende desse treinamento e isso é um trabalho desqualificado, pode haver treinadores dispostos a bagunçar o sistema, e isso gera dados de baixa qualidade que, depois, treinam a IA. E essa IA vai ficando cada vez menos confiável e vai gerando os erros horrorosos que vemos por aí. Ou seja, ao se colocar um trabalho decente como ponto de partida da regulação de IA, significa também fortalecer dados de boa qualidade no treinamento de IA.

Existe impacto na qualidade do serviço de inteligência das empresas...

Sim. A questão é como incluir esses trabalhadores nessa regulação. Precisa ser discutido. Estou falando muito dos treinadores de dados, mas isso vai acabar. A greve dos roteiristas de Hollywood pelo uso de IA no audiovisual vai obrigar que cada setor, com sua própria relação capital-trabalho, tenha acordos em que os trabalhadores vão entender o que é mais justo em relação ao uso de IA generativa. E o Estado possivelmente vai ter que arbitrar muitas dessas disputas. Vamos ter que discutir o que é justo das empresas cobrarem de IA generativa ou dos trabalhadores usarem IA generativa no seu ambiente de trabalho. Essas negociações que vão acontecer em todos os setores é algo que prevejo para os próximos anos.

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