Em tempos de crise, é bem comum que muita gente passe o dia preocupado, durante o trabalho, pensando em como vai fazer para o dinheiro durar até o final do mês. É um problema não só para as pessoas, mas também para as empresas, que veem os funcionários perderem produtividade e até mesmo deixarem o local de trabalho em busca de uma vaga que pague melhor. É de olho justamente nessa questão que uma série de startups têm começado a oferecer serviços financeiros para funcionários de seus clientes, tentando resolver a dificuldade dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, ajudando companhias a atrair e reter pessoas.
Uma das empresas que está apostando no segmento, a catarinense Leve, é liderada por dois nomes que já viveram na pele o que é administrar uma startup: Gustavo Raposo foi criador da Arvus, agritech que foi vendida para uma multinacional sueca em 2014; já seu sócio João Zaratine foi um dos fundadores da startup catarinense ContaAzul, sempre listada como candidata a unicórnio. Fundada em março de 2019 em Florianópolis, a empresa oferece produtos como empréstimos e adiantamento de salário para funcionários de seus clientes – ao todo, são 85 parceiros, incluindo nomes como Resultados Digitais, Imaginarium e Puket.
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“Queremos mudar a forma como as pessoas enxergam os benefícios. Assim como todo mundo tem vale alimentação e vale transporte, é essencial ter hoje o benefício do bem-estar financeiro nas companhias”, diz Raposo, em entrevista exclusiva ao Estadão. Além dos produtos em si, a empresa também oferece serviços de educação e consultoria financeira aos funcionários – este último é cobrado, com custo dividido entre empregador e funcionário. A empresa também fatura cobrando juros pelos empréstimos.
Em junho deste ano, a startup levantou um aporte de US$ 1 milhão do fundo Global Founders Capital, que já investiu em empresas como Facebook, LinkedIn e a brasileira Kovi, que aluga carros para motoristas de apps. O cheque está sendo usado para aprimorar o produto e também para contratações: do início do ano para cá, a Leve multiplicou seu time em cinco vezes, chegando a 21 pessoas. Todas trabalham remotamente — o escritório físico da startup, em Florianópolis, foi inaugurado na semana em que começou a quarentena, e ainda está vazio.
Para os empreendedores, entender os problemas financeiros dos funcionários é ainda uma questão pouco visualizada pelas empresas. “Ainda é um tabu falar sobre finanças, mas é um problema que impacta no desempenho do profissional e também o leva à busca por outros empregos. No final do dia, a empresa tem gastos com horas produtivas perdidas, além de recrutamentos e treinamentos”, afirma Zaratine, sócio da Leve.
Professora do Insper de planejamento estratégico, Luciana Lima afirma que há espaço no mercado para a proposta da Leve: “A lógica de um contrato de trabalho com um salário fixo maior e um pacote de benefícios menor está mudando, com trabalhadores olhando cada vez mais para benefícios flexíveis e personalizados”, explica. Por outro lado, ela diz que muitas empresas sentiram a necessidade dar esse suporte para seus empregados durante a pandemia. “A crise mostrou para as companhias a importância de ter recursos financeiros e emocionais para lidar com qualquer situação e poder trabalhar com tranquilidade.”
Flexibilidade
Dentro dessa demanda de serviços financeiros para trabalhadores, a antecipação salarial é uma das grandes apostas. Em pequenas empresas, a prática costuma ser bastante informal, mas as startups estão de olho em como torná-la digital, formal e até, o quanto possível, indolor. É o caso da Xerpa, que tem entre seus 30 clientes nomes como CargoX, Rappi e Nivea— ao todo, 65 mil funcionários podem utilizar os serviços da empresa, que permite ao trabalhador adiantar o salário da parte já trabalhada dentro de um mês.
“As pessoas recebem salário da mesma maneira há cem anos, mas a forma como gastamos dinheiro mudou”, afirma o americano Nicholas Reise, presidente executivo da Xerpa, que foi fundada em 2015. Durante a pandemia, a empresa viu seu serviço ser requisitado como nunca: segundo dados internos, o número mensal de saques cresceu 530% entre janeiro e outubro. Além disso, a empresa criou ainda um segundo serviço, de adiantamento do 13º salário, ao longo dos últimos meses. “Em breve, vamos trabalhar na criação de novas formas de linhas emergenciais”, diz Reise.
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Há também quem aposte em deixar o funcionário escolher como quer usar os benefícios da empresa de forma flexível. É o caso da startup Caju, cujo serviço permite ao usuário transferir parte do dinheiro do vale transporte para o alimentação, por exemplo. “Cada trabalhador tem uma dinâmica familiar. Flexibilizar é um uso inteligente porque evita o comportamento comum de gastar no vale refeição só porque estava sobrando”, diz Eduardo del Giglio, presidente executivo da startup, que recebeu em agosto um aporte de R$ 13 milhões liderado pelos fundos Valor e Canary – o cheque também teve a participação de Ariel Lambrecht, fundador de 99 e Yellow.
Para manejar os benefícios, os usuários utilizam um cartão da bandeira Visa – ao todo, 25 mil pessoas já usam o serviço da Caju, que tem clientes como Loft e Pipefy. “Começamos focados em startups, porque o setor tem problemas com retenção de talentos. Mas a competitividade é uma questão geral: já temos vários clientes que são agências de publicidade, por exemplo”, afirma Giglio.
Pacotão
Quem também entrou no setor de olho na oportunidade de expandir seus serviços é a Creditas, fintech que costuma frequentar as listas de “próximos unicórnios” do Brasil. Conhecida por serviços de empréstimo com garantias como imóveis e carros, a empresa do espanhol Sergio Furio oferece crédito consignado privado desde o ano passado. Este ano, a empresa dobrou a aposta no setor de serviços corporativos, lançando antecipação salarial e até mesmo uma loja que usa o salário como garantia para crédito.
Em setembro, foi a vez de um cartão de benefícios flexíveis – na mesma data, a empresa reuniu suas ofertas em uma nova divisão interna, chamada de Creditas @ Work. Hoje, a área concentra 250 dos 1,7 mil funcionários da startup. “Queremos ser parceiros do departamento de recursos humanos no que importa. Um benefício não é só ter salada ou fruta de graça no escritório, é conseguir que o funcionário faça seu dinheiro render melhor com o mesmo salário”, diz o executivo.
A Creditas não cobra das empresas parceiras para prestar o serviço – segundo Furio, a intenção é atrair clientes, quando necessário, para o produto de crédito consignado. “É como se fosse um jogo de celular: há coisas que são gratuitas, outras não”, diz o executivo, que vê grande espaço no crescimento de empréstimos a trabalhadores CLT. “Hoje, o consignado privado não é nem 10% do valor do crédito consignado público, concedido a funcionários públicos, aposentados e pensionistas. Há muito espaço para crescer.”
A proposta de Furio é vista com olhos mistos pelos concorrentes. “A gente vive para mudar a forma como as pessoas são pagas. É diferente de quem vem com o crédito como principal proposta”, diz Reise, da Xerpa. No entanto, ele mesmo reconhece que a disputa é mais saudável do que prejudicial. “Ter grandes empresas entrando nesse mercado ajuda na nossa principal missão hoje, que é ajudar o mercado a entender que serviços financeiros patrocinados pelos empregadores são importantes. Tem muito espaço para todo mundo.”