Como o YouTube está mudando a cultura de armas dos Estados Unidos

Influenciadores conhecidos como ‘guntubers’ ensinam como atirar até modificar um AR-15

PUBLICIDADE

Por Thomas Gibbons-Neff (The New York Times)

Joseph Osse carregou seu sedã preto com algumas armas, um alvo de aço e um suporte de gravação para seu telefone antes de dirigir até o deserto a oeste de Salt Lake City em um dia frio de meados de novembro.

PUBLICIDADE

Osse, de 32 anos, começou a se filmar praticando tiro ao alvo há cerca de um ano para vídeos curtos que ele postava no YouTube. Ele já fez mais de 300, com títulos peculiares como “Plinking Steel” (Disparando em Aço), “Art of the Mag Dump” (A Arte de Esvaziar o Carregador) e “First Person Rifle Cam” (Câmera de Rifle em Primeira Pessoa), que atraem de algumas centenas a vários milhares de visualizações cada.

O conteúdo sobre armas de fogo no YouTube sempre foi relativamente de nicho, uma recomendação algorítmica que pode aparecer depois que os espectadores assistem a uma transmissão do jogo Call of Duty ou pesquisam informações sobre as armas sofisticadas usadas por John Wick, o popular assassino dos cinemas.

Joseph Osse aprendeu a atirar assistindo aos canais do YouTube que agora ele tenta imitar. Foto: Lindsay Dõaddato/The New York Times

Osse, que publica vídeos sob o nome Graizen Brann, aprendeu a atirar assistindo aos canais do YouTube que agora tenta emular. No passado, o conhecimento sobre armas de fogo era frequentemente transmitido por membros mais velhos da família e aprendido em grupos de jovens ou ao entrar para o Exército.

Publicidade

“Eu gostava do que estava fazendo”, disse ele. “E talvez se houvesse mais alguém no planeta que se sentisse da mesma forma que eu em relação às armas de fogo, que fosse em frente, se inscrevesse e visse o que acontecia.”

Uma nova geração de proprietários de armas nos Estados Unidos, que são mais jovens, racialmente diversos e interessados em treinamento tático e autodefesa, está assistindo regularmente a canais sobre armas. Esse conteúdo já acumulou mais de 29 bilhões de visualizações no YouTube, segundo dados não publicados de pesquisadores do Instituto para o Diálogo Estratégico e do Laboratório de Pesquisa Forense Digital do Conselho Atlântico. Isso deu origem a uma subcultura crescente conhecida como guntube, com criadores chamados de guntubers.

“Tem um público gigantesco que, até recentemente, não tentávamos entender,” disse Jared Holt, pesquisador sênior do Instituto para o Diálogo Estratégico, um think tank que pesquisa o impacto da tecnologia em questões políticas e sociais.

Para alguns, os vídeos que analisam armas de fogo, testam equipamentos e oferecem dicas de treinamento são apenas mais um hobby, como ciclismo ou tocar guitarra.

Publicidade

Mas o guntube é uma comunidade vasta e própria. Alguns guntubers têm seguidores fiéis, e há até uma premiação chamada The Gundies, uma referência aos Dundies, do seriado The Office. A indústria de armas patrocina criadores de conteúdo — que ajudam a vender armas e inúmeros acessórios — e, assim como os streamers de videogame, algumas estrelas do guntube ganham milhares de dólares por vídeo. Um deles até concorreu a um cargo político.

Osse começou a se filmar atirando há cerca de um ano.  Foto: Lindsay Dõaddato/The New York Times
Osse é parte de uma nova geração atraída por conteúdos sobre armas de fogo.  Foto: Lindsay Dõaddato/The New York Times

E armas não são guitarras. A crescente presença desse conteúdo no YouTube gerou algumas controvérsias, principalmente sobre o conteúdo dos vídeos e quem deveria ter acesso a eles.

O atirador que tentou matar Donald Trump, em julho, vestia uma camiseta de um canal popular de guntube quando foi morto por um sniper do Serviço Secreto. Antes de matar 10 pessoas em um supermercado de Buffalo, em 2022, Payton S. Gendron afirmou nas redes sociais que assistia a vídeos de treinamento tático com armas de fogo no YouTube.

Em março, um juiz do Estado de Nova York decidiu que o Google (empresa-mãe do YouTube) e o Reddit enfrentariam processos por facilitarem o ataque racista de Gendron. Em junho, sob pressão do grupo de defesa do controle de armas Everytown, o YouTube anunciou que restringiria determinados conteúdos sobre armas para espectadores menores de 18 anos e proibiria vídeos que demonstrassem modificações e recursos específicos em certas armas. Para contornar as restrições e proibições do YouTube, alguns dos guntubers mais populares migraram para suas próprias plataformas de streaming dedicadas a armas.

Publicidade

Osse, que imigrou do Haiti no início dos anos 90, foi criado por um pai solteiro que trabalhava como mecânico da Força Aérea dos EUA. Como muitos millennials, ele se interessou por meio de videogames e comprou a primeira — uma pistola Glock — durante a pandemia de Covid-19. Ele ganha um salário mínimo como digitador de dados e consegue dinheiro em trabalhos paralelos para sustentar um hobby que, segundo ele, consiste em aprender a atirar, defender-se e ensinar outras pessoas.

“Não estou nisso pelo dinheiro agora, então estou apenas curtindo compartilhar conteúdo com o mundo e vendo avaliações positivas e negativas também”, disse Osse.

Um dos canais que Osse assistia quando começou a aprender a atirar, em 2022, era o T. Rex Arms, um ícone do guntube e um portal de conhecimento sobre armas, equipamentos, treinamento e a chamada “indústria de defesa cidadã”, conforme descrito em seu site.

O canal, com cerca de uma década, começou com seu criador e estrela principal, Lucas Botkin, filmando alvos e fabricando coldres de pistola com folhas de termoplástico em um forno de torradeira. Agora, o canal tem mais de um milhão de inscritos, um podcast semanal, um aplicativo de treinamento para download e um negócio de equipamentos táticos com cerca de 90 funcionários.

Publicidade

Isaac Botkin, irmão de Lucas e apresentador do podcast T. Rex Talk, liga a origem do guntube a uma série de DVDs de treinamento tático lançados em 2008, no auge das guerras no Iraque e no Afeganistão e poucos meses depois do lançamento do jogo Call of Duty 4: Modern Warfare.

“Os videogames se tornaram realistas, estávamos em guerra como nação e esse conteúdo estava disponível em DVDs e na internet”, disse Botkin. “O treinamento prático deixou de ser um conhecimento secreto e passou a ser amplamente acessível.”

Para Chris Charles, guntuber de 26 anos, os videogames foram a porta de entrada do tiro digital para o tiro real.

“O Call of Duty 4 foi um marco”, disse Charles, que vive em Stockbridge, um subúrbio de Atlanta, onde trabalha como inspetor de emissões de carros e estuda mídia digital na Universidade Mercer. “Foi isso que trouxe todas as armas, todos os acessórios, e foi isso que mudou tudo.”

Publicidade

Chris Charles mora num subúrbio de Atlanta, trabalha como inspetor de emissões de automóveis e estuda mídia digital.  Foto: Audra Melton/The New York Times
Chales (esquerda) começou o próprio canal há cerca de um ano.  Foto: Audra Melton/The New York Times

Charles começou a atirar como um hobby sério depois que seu irmão lhe deu o receptor superior de um AR-15 quando ele tinha 17 anos. Vídeos no YouTube o ajudaram a montar o fuzil, e quando sua mãe morreu alguns anos depois, o tiro substituiu outros hobbies, como tocar piano, jogar futebol e escalar, como forma de lidar com a perda.

Ele criou seu próprio canal, Kit, Guns, & Gear, há cerca de um ano, e atraiu um número modesto de seguidores. Para Charles, atirar é estritamente um hobby, separado das mensagens antigovernamentais e da Segunda Emenda que alguns canais proeminentes do guntubers reproduzem porque isso gera engajamento. Embora, é claro, diz Charles, “algumas dessas coisas se infiltram”.

Apenas alguns dias antes da eleição presidencial em novembro, Charles, e mais 10 amigos, incluindo uma mulher, a maioria entre 20 e 30 anos, participaram de uma competição de pistola em um clube de tiro que foi gravada para seu canal.

Mark Leeber, um dos funcionários do campo, pratica tiro desde a década de 1990 e atribuiu a composição do grupo a uma “grande mudança cultural”. Ele disse que o YouTube tornou o esporte mais acessível. O desenvolvimento mais significativo, acrescentou, foi a mudança demográfica.

Publicidade

“Muito mais afro-americanos estão entrando nesse meio”, disse Leeber, acrescentando que mulheres negras também estavam frequentando o estande de tiro com mais frequência. “Elas estão demonstrando um nível diferente de interesse em todas as faixas etárias. É uma dinâmica interessante porque, quando comecei, era um grupo de homens brancos ou homens brancos de meia-idade.”

Muitos canais de guntube são administrados por homens, mas um deles — Tacticool Girlfriend, com mais de 62.000 seguidores — é comandado por uma mulher trans que mantém sua identidade em segredo por medo de ser perseguida. Em um vídeo no outono passado (Hemisfério Norte), ela chamou o guntube de um “lugar muito tóxico” que está “repleto de machismo e todo tipo de intolerância”, uma referência à exclusão comunitária que transcende o gênero e opõe os méritos das experiências militares e civis quando se trata de conhecimento sobre armas de fogo.

“Mas eu realmente quero ver mais pessoas fazendo esse trabalho porque ele é muito importante, e eu já vi os efeitos que causei em inúmeras pessoas e comunidades”, acrescentou, referindo-se aos benefícios da educação sobre armas, especialmente entre grupos que normalmente não são vistos em estandes de tiro.

A sequência de 2009 de Call of Duty 4: Modern Warfare levou Tim Stuckey, um operário de siderurgia, a se interessar por tiro e, eventualmente, a criar seu próprio canal, Gear And Guns, em 2022. Desde então, o canal cresceu e já conta com mais de 9.000 seguidores.

Publicidade

“Começou com armas Nerf, depois para armas de chumbinho, e então comecei a me interessar mais pelo que meu pai tinha, que era uma espingarda”, disse Stuckey, de 24 anos.

Tim Stuckey desenvolveu interesse em armas por meio de jogos de videogame e criou o próprio canal.  Foto: Madeleine Hordinski /The New York Times
Popularidade de Stuckey no YouTube sugere que civis estão encontrando espaço num meio antes dominado por militares.  Foto: Madeleine Hordinski/The New York Times

O canal de Stuckey inclui conteúdos como como montar um AR-15 ou escolher o suporte de mira certo. Em outubro, ele recebeu seu primeiro pagamento de US$ 219,23 pelos vídeos. Para Stuckey, que é religioso e espera se tornar policial, a posse de armas e a Segunda Emenda estão enraizadas na ideia de “preservação da vida”. Ele disse que faz vídeos para ajudar outros donos de armas a aprenderem com seus erros.

O crescimento da popularidade de Stuckey parece apontar para uma tendência mais ampla: civis estão encontrando espaço em uma comunidade antes dominada por pessoas com histórico militar e de aplicação da lei.

Na casa de estilo rancho nos arredores de Fort Wayne, Indiana, Grace Stuckey, enfermeira de UTI, disse que sua relação com armas de fogo é diferente da do marido. Ela não cresceu em meio a armas. Apesar de ter sido exposta à violência armada como enfermeira, aos poucos passou a apreciar o hobby, à medida que Stuckey dedicava grande parte do seu tempo livre ao tiro e à criação de conteúdo para seus seguidores.

Publicidade

“Quero dizer, você tem a capacidade de matar alguém, então isso fica no fundo da mente também”, disse Grace, sentada na sala de estar enquanto o coelho de estimação do casal, Schmoogs, caminhava pelo chão. “Mas acho que a questão é que ele está ajudando as pessoas. Tipo, ontem ele me mostrou os comentários que recebe no Facebook e disse: ‘Estou realmente ajudando alguém agora.’”

Este conteúdo foi traduzido com o auxílio de ferramentas de Inteligência Artificial e revisado por nossa equipe editorial. Saiba mais em nossa Política de IA.

Comentários

Os comentários são exclusivos para cadastrados.