Na intimidade com Mario Cravo Neto

Mostra em homenagem ao artista destaca uma obra que vai muito além da linguagem fotográfica como forma de expressão

PUBLICIDADE

Por Maria Hirszman
Atualização:

Eternamente Agora, que será aberta hoje no Instituto Tomie Ohtake, é bem mais do que um merecido tributo a Mario Cravo Neto (1947-2009), um dos grandes nomes da fotografia contemporânea brasileira, que morreu precocemente em agosto. Concebida em parceria por Cristian Cravo, fotógrafo e filho do artista, e por Paulo Herkenhoff, a mostra indica - por meio de uma seleção enxuta, mas criteriosa de trabalhos - questões centrais em sua produção. Além de nexos estéticos e temáticos, a exposição se pauta pelo Herkenhoff define como "trama dos afetos", privilegiando seu universo afetivo e deixando de lado o caráter mais mundano de sua produção.Dentre esses liames se destaca com grande força a intensa relação entre Mario Cravo Neto e seu pai, o escultor Mario Cravo Junior, presente a partir de obras, registros fotográficos (seu último trabalho, presente na mostra, era justamente para ilustrar um livro que idealizava realizar sobre a obra do pai) e um impressionante retrato. Familiares (modelos frequentes do artista) e a cena doméstica estão presentes, inclusive pela transposição para o espaço da exposição de um canto, com móveis e objetos da casa em que viveu.Há também, fechando o ciclo, uma bela imagem de autoria de Cristian. De grandes dimensões e num pouco usual recorte vertical, a foto mostra um menino de costas, em posição de reverência diante de uma magnífica cachoeira. "Um ato de humildade diante de algo muito maior", diz Cristian explicando por que escolheu essa imagem dentre tantas para a mostra. A exposição evidencia ainda uma forte relação existente entre o fotógrafo e Pierre Verger e não apenas pelo viés do fascínio compartilhado pela Bahia e pelo candomblé.A maioria das obras selecionadas pertence a um universo fechado, de registro intimista em ateliê, de retratos de pessoas ou objetos, conciliando sólida busca formal com sensível apreensão poética e simbólica do mundo à sua volta. Mais conhecido pela obra fotográfica, Cravo Neto não se atinha a essa linguagem como forma de expressão, pelo menos até meados da década de 70, quando realiza e performances, posteriormente registradas em foto. A exposição traz uma delas, Câmaras Queimadas (1977), nas duas versões. Também é mostrado, em versão fotográfica e com toda sua materialidade física, o ninho feito com fiberglass que tanto fascinava o artista por sua situação ambígua e provocadora, entre a natureza e a artificialidade.Aliás, a transitoriedade, a relação de choque e harmonia entre imagens distintas, o contraste entre a ação impactante da cor e a densidade da imagem em preto e branco, o jogo entre o real e a representação são elementos quase constantes na poética de Mario Cravo Junior. No tríptico A Flecha em Repouso, é explorada uma associação potente entre as simbologias míticas do candomblé e da iconografia cristã, ora tirando faíscas do choque entre as imagens e ora estabelecendo estranhas harmonias entre os elementos. A imagem central, que retrata a fachada de uma igreja parisiense, parece mergulhar no cinza escuro que lhe é bastante característico. No entanto, ao observar as pernas das imagens esculpidas, vê-se que isso é ilusório. Estamos, na verdade, diante de uma fotografia tão colorida quanto o prato do sacrifício do candomblé à esquerda ou a moça que dorme à direita. Mas foi necessária uma fricção, uma reação quase epidérmica para que os tons do metal brotassem. "Ele parece lidar com a carnalidade da fotografia", sintetiza Herkenhoff.Apesar do forte caráter barroco de sua obra, o curador parece interessado em abordar outro aspecto menos explorado da produção do artista: a relação com o minimalismo. Além da importância do movimento em sua formação (Cravo Neto vivia em Nova York no fim dos anos 60 e teve contato com a primeira grande publicação sobre o tema, editada em 1968 por Gregory Battcock), o que leva o curador a fazer essa aproximação é a redução poética e a economia formal fortemente presentes em seu trabalho. Obra essa que ainda tem muito a ser explorada. Cristian Cravo calcula que apenas 1% da obra do pai tenha sido ampliada até o momento e promete para breve a criação de um instituto para preservação e divulgação de sua obra, a instalar-se provavelmente em São Paulo.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.