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A implicância de Lira com a burocracia

Para o presidente da Câmara, o Orçamento não pode estar à mercê de quem não foi eleito para escolher as prioridades. Mas é a burocracia que dificulta os desmandos de quem foi eleito

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Por Notas & Informações
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O discurso do presidente da Câmara na abertura do ano legislativo é matéria-prima para especialistas de diferentes ramos do conhecimento. Os cientistas políticos decerto se interessaram pelos recados de Arthur Lira ao Poder Executivo quanto ao “respeito aos acordos firmados e o cumprimento à palavra empenhada”. Aos economistas, deve ter sobressaído a defesa do papel do Legislativo na elaboração e aprovação do Orçamento (leia-se: na apropriação de recursos via emendas parlamentares). Já os juristas provavelmente repararam na implicância de Lira com o que chamou de “burocracia técnica”.

Sobre esse último ponto, o presidente da Câmara afirmou que o Orçamento não pode ser de autoria exclusiva do Poder Executivo “e muito menos de uma burocracia técnica”. Isso porque essa burocracia “não foi eleita para escolher as prioridades da nação” e “não gasta a sola de sapato percorrendo os pequenos municípios brasileiros como nós, parlamentares”. Por mais relevantes que sejam as informações obtidas e as carências constatadas pelos representantes do povo em suas bases eleitorais, o momento e o tom da intervenção de Lira sugerem que seu problema com a burocracia decorre, sobretudo, do fato de que ela é um óbice à ampliação do livre uso dos recursos orçamentários pelos deputados.

O presidente da Câmara bem sabe que o aparelho burocrático é uma consequência da expansão das funções do Estado. Essa expansão é fruto, dentre outros, de disposições e programas previstos no texto constitucional e do sufrágio universal vigente no País. Quanto mais amplo o eleitorado, mais diversificadas suas pretensões; daí o aumento das tarefas a cargo do Estado, que precisa aparelhar-se para cumpri-las.

No entanto, segundo Lira, a “burocracia técnica” não estaria autorizada a imiscuir-se nas decisões parlamentares sobre a destinação do Orçamento por lhe faltar tanto legitimidade democrática quanto conhecimento das necessidades concretas do interior do País.

De fato, o poder do burocrata não é um poder genuinamente democrático. O aparelho burocrático é uma estrutura hierárquica em que o poder não provém dos cidadãos, mas é exercido sobre eles. No mais, a democracia é o governo da opinião, não do saber técnico.

Por outro lado, é inegável que questões nacionais e mundiais da maior importância dependem de algum conhecimento e domínio técnico para poderem ser compreendidas e enfrentadas. Isso de forma alguma exclui a política, mas mostra que uma burocracia treinada e bem conduzida é indispensável à delimitação, à implementação e ao aperfeiçoamento de decisões, prioridades e projetos da própria política.

Por isso, o parlamentar que “gasta a sola do sapato percorrendo os pequenos municípios brasileiros” não necessariamente realiza a melhor alocação dos recursos orçamentários. Ressalte-se que o contrário pode ocorrer, considerando-se que, no nosso País, a destinação das emendas frequentemente decorre da vontade isolada de cada parlamentar (descoordenação), nem sempre é transparente ou conta com critérios e objetivos claros. Às vezes, dá em corrupção.

A razão mais profunda do apetite de boa parte dos congressistas pelas emendas está na ajuda que elas dão para garantir o lugar deles na legislatura seguinte. Como explicou o economista Roberto Macedo em artigo neste jornal, “prefeitos e vereadores municipais têm grande influência nos resultados das eleições estaduais e federais, dada a sua relação com os eleitores locais, em torno dos quais passam a atuar como cabos eleitorais”. Aí “entram as emendas, pois os parlamentares procuram destiná-las às suas bases eleitorais, cativando prefeitos e vereadores em busca de apoio para reeleição. Garantidas as emendas, os candidatos incumbentes (...) passam a alardear o seu papel, à cata de votos futuros” (Problema das emendas parlamentares se agravou, 4/1/24).

Combater esses usos ora desmesurados, ora desvirtuados do poder político é uma das principais tarefas de uma burocracia dedicada a estruturar e implementar da maneira mais eficaz os comandos e objetivos legais. Talvez venha daí a implicância de Lira.l