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A necessária reforma do Orçamento

Acúmulo de restos a pagar exacerba a recusa do Executivo e do Legislativo em fazer escolhas baseadas no melhor interesse público e explica como o orçamento se tornou uma peça de ficção

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Por Notas & Informações
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O Ministério do Planejamento pretende apresentar uma proposta de reforma do Orçamento. Segundo apurou o Estadão, um dos objetivos é criar mecanismos que impeçam o acúmulo dos restos a pagar, ou seja, despesas que o governo se comprometeu a quitar em um determinado ano, mas que, por variadas razões, ficaram para depois. Pode parecer inacreditável, mas os restos a pagar somam hoje um montante de R$ 284,8 bilhões.

Ao contrário do que se imagina, embora estejam vinculados ao Orçamento de um período que já se encerrou, esses dispêndios não são automaticamente cancelados na passagem de um ano para o outro. Ficam “pendurados” em um orçamento paralelo, competindo com o espaço das despesas da peça orçamentária em vigor.

Neste ano, 80,4% desse saldo é composto por despesas de 2023 – muito em razão da recomposição dos gastos autorizada pela emenda constitucional da transição. Mas há, entre os restos a pagar, gastos que foram originalmente propostos há mais de dez anos, o equivalente a 1% do total.

Não parece nada razoável que um gasto com o qual o governo se comprometeu há tanto tempo seja adiado indefinidamente e fique em suspenso. Afinal, se a despesa era realmente relevante, já deveria ter sido executada; se perdeu a importância ao longo da passagem do tempo, já deveria ter sido cancelada.

Parte disso se deve ao fato de que muitos dos restos a pagar simplesmente não podem ser cancelados. As emendas parlamentares individuais e as emendas de bancada, por seu caráter impositivo, tampouco podem ser cortadas pelo Executivo e somam, respectivamente, R$ 7,3 bilhões e R$ 8,2 bilhões dos restos a pagar.

Mas mesmo as antigas emendas de relator, que não apenas nunca foram obrigatórias, como também já foram extintas, aumentam o bolo dos restos a pagar. Base do chamado orçamento secreto, esquema revelado pelo Estadão, elas foram declaradas inconstitucionais por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), mas, ainda hoje, correspondem a R$ 9,3 bilhões do total de restos a pagar.

Tentativas de correção pontuais desse enorme problema têm sido inócuas. Para colocar alguma ordem nessa bagunça, o governo bloqueou, no início do ano passado, todas as despesas com valor superior a R$ 1 milhão, que somavam, à época, R$ 33,6 bilhões. Desse pente-fino, a montanha pariu um rato, e apenas R$ 679 milhões – ou 2% do total – foram efetivamente cancelados.

Ora, não há como fazer uma gestão fiscal minimamente responsável sem respeitar o princípio da anualidade orçamentária. Não há como fazer uma gestão fiscal digna do nome quando há tantas despesas antigas competindo pelo mesmo espaço orçamentário, cada vez mais exíguo em razão do avanço das despesas obrigatórias.

Nesse sentido, uma reforma na lei de finanças públicas, como propõe o Ministério do Planejamento, seria muito bem-vinda. Prestes a completar 60 anos, a legislação se tornou, ao longo desse tempo, um emaranhado de regras que somente técnicos experientes são capazes de entender.

Já aprovada no Senado, a proposta de reforma estabelece prazos mais curtos para cancelar automaticamente os restos a pagar por tipo de despesa, mas acumula poeira nos escaninhos da Câmara desde 2016. A falta de consenso e de vontade política para referendá-la não surpreende. Parlamentares não querem abrir mão do poder que acumularam nos últimos anos, e o Executivo não tem sido capaz de mobilizá-los.

Qualquer mudança proposta pelo governo no Orçamento precisa do aval do Congresso, e as emendas se tornaram a maneira mais simples de o Executivo arbitrar qualquer disputa. Há que reconhecer, no entanto, que o problema antecede ao governo Lula.

Os restos a pagar exacerbam a recusa do Executivo e do Legislativo em entrar em acordo e fazer escolhas baseadas no melhor interesse público. Esse é apenas um dos aspectos, entre tantos, a explicar como o Orçamento se tornou uma peça de ficção que não traduz as escolhas da sociedade. Daí se entende por que o País não consegue vencer desafios históricos como a baixa qualidade da educação e as persistentes desigualdades sociais.