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Ajuste fiscal à custa dos pobres

Proposta do governo para mudar reajuste do salário mínimo é extemporânea e parte de um princípio equivocado. Outros gastos deveriam entrar na mira do Executivo

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Por Notas & Informações
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 Às vésperas do segundo turno, o País soube que o governo tem um plano econômico pronto para ser apresentado após a eleição, na hipótese, é claro, de que o presidente Jair Bolsonaro se reeleja. O Ministério da Economia quer mudar a fórmula de reajuste do salário mínimo e dos benefícios previdenciários. 

A ideia é substituir a reposição pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) do ano anterior pela projeção ou pela meta de inflação do ano corrente, segundo reportagem da Folha de S.Paulo. Se a proposta já estivesse em vigor neste ano, o mínimo teria tido um aumento entre 3,5% e 5% – inferior, portanto, aos 10,16% dados com base no INPC.

A repercussão, naturalmente, foi péssima e, na tentativa de conter danos à candidatura de Bolsonaro, o governo fez um esforço para negá-la. Debalde. Em uma mesma frase, o presidente reconheceu que o índice ficaria indefinido e garantiu que haveria aumento real. O ministro Paulo Guedes, por sua vez, disse que desindexar “não quer dizer que você vai dar menos, pode até ser que se dê mais”. Desindexar, porém, só serve para autorizar um ganho inferior à inflação – algo que hoje a Constituição não permite. Não há nenhuma limitação para a adoção de índices maiores que a inflação para elevar o mínimo – e o próprio Ministério da Economia admitiu oficialmente que isso depende somente de espaço no Orçamento, lei ou medida provisória. Em outras palavras, basta haver vontade política, o que não houve ao longo de todo o governo Bolsonaro. O mais recente reajuste real ao piso foi dado em 2019, último ano em que vigorou a política de valorização praticada e aprovada por lei durante as gestões petistas.

Por trás da chamada desindexação, o que o governo pretende é realizar um ajuste fiscal a ser pago por uma das camadas mais vulneráveis da população – aposentados, pensionistas, pessoas com deficiência e trabalhadores na base da pirâmide salarial. O sacrifício imposto a esses milhões de brasileiros acomodaria as promessas eleitoreiras do presidente que ainda não foram incorporadas ao Orçamento de 2023, como a manutenção do Auxílio Brasil em R$ 600 e o pagamento do 13.º para mulheres beneficiárias, algo que expressa com exatidão o conceito de tirar dos pobres para dar aos paupérrimos. Se a proposta de Guedes estivesse em vigor desde 2002, o mínimo, hoje em R$ 1.212, seria de apenas R$ 502, segundo cálculos do Centro de Pesquisas em Macroeconomia das Desigualdades da FEA-USP. Seria um valor inferior ao do atual piso do Auxílio Brasil.

Convenientemente, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), não fez qualquer referência ao mínimo ao defender a medida, destacando que o plano dispensaria a necessidade de uma âncora fiscal e de uma licença para acomodar despesas extras em 2023. O que Barros também não disse é que o pacote garantiria a execução integral das emendas de relator, hoje sujeitas ao teto de gastos, proporcionando ao Congresso um poder ainda maior sobre a destinação dos recursos do Orçamento.

Este jornal sempre se mostrou favorável a medidas que reduzam o engessamento do Orçamento, hoje composto por 93% de dispêndios obrigatórios. Mas a proposta do governo, além de extemporânea, parte de um princípio absolutamente equivocado. A busca de maior eficiência no gasto público é um objetivo necessário e defensável, tão urgente quanto permanente, mas não pode se dar pela depredação do poder de compra dos mais carentes. Há muitas outras despesas que deveriam entrar na mira do Executivo – a começar pelas emendas de relator. Isso demanda uma reforma orientada por um horizonte que vá além da eleição e um amplo debate com a sociedade.

O atual salário mínimo está longe de satisfazer todas as necessidades para a sobrevivência de um trabalhador ou de um beneficiário da Previdência Social. Sua valorização, no entanto, representou uma verdadeira conquista civilizatória em um país que ocupava – e ainda ocupa – as primeiras posições no ranking mundial de desigualdade social.