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Andando em círculos na área fiscal

Discussão sobre o tamanho do contingenciamento mostra o quanto o debate sobre a política fiscal ainda precisa avançar. Manobras e interpretações criativas só enfraquecem arcabouço

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Por Notas & Informações
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O mais novo impasse em torno da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) é a emenda que impõe limites ao tamanho do contingenciamento que o governo poderá fazer para cumprir a meta de zerar o déficit fiscal em 2024. Apresentada pelo líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), a proposta se baseia em uma interpretação criativa, para dizer o mínimo, que o Executivo tenta emplacar para driblar as regras fiscais.

O novo arcabouço fiscal estabeleceu um piso de 0,6% e um teto de 2,5% para o crescimento real das despesas primárias a cada ano – sejam obrigatórias, sejam discricionárias. A proposta estipulou, também, que o governo pode bloquear, no máximo, 25% dos gastos discricionários, o equivalente a R$ 53 bilhões, nas contas do governo.

Como se sabe, os contingenciamentos, instituídos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), têm sido o principal instrumento à mão do Executivo para cumprir a meta. Não são, nem nunca foram, opcionais. Mas o presidente Lula da Silva, aparentemente, só se lembrou disso mais recentemente, quando passou a menosprezar publicamente a importância de zerar o déficit em 2024, no fim de outubro.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tentou reduzir o estrago com um parecer jurídico. A tese, elaborada pela Advocacia-Geral da União (AGU) e pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), tornou-se a base da emenda de Randolfe. Tal emenda estabelece um novo limite para o contingenciamento dos gastos discricionários, de até R$ 23 bilhões, de forma a preservar o piso de 0,6% para o crescimento real das despesas – uma forma de agradar ao chefe e salvar a meta de seus ataques.

Em Dubai, Haddad disse que o relator da LDO se comprometeu a acatar a proposta. Em Brasília, no entanto, Danilo Forte (União-CE) afirmou que a rejeitaria, por orientação do Tribunal de Contas da União (TCU) e de consultores legislativos. A nota elaborada pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara finalmente veio a público e, de fato, não deixa dúvidas sobre o que deve ser feito.

Não há, segundo a Consultoria, conflito entre as leis. O fato de o arcabouço determinar um piso de 0,6% para o crescimento das despesas primárias serve unicamente para estabelecer o espaço fiscal disponível no Orçamento. Não há, no entanto, obrigação de utilizá-lo no todo, sobretudo se o cumprimento da meta estiver sob risco. Neste caso, o contingenciamento deve obrigatoriamente ser adotado.

A Consultoria reafirma que a LDO é uma lei ordinária e, portanto, deve submeter-se aos dispositivos do arcabouço e da LRF, ambas leis complementares. Em suma, para os técnicos, a tese da AGU e da PGFN “subverte a lógica” do arcabouço e “extrapola o espaço interpretativo concedido pelo texto legal”.

Segundo a consultoria, o contingenciamento pode chegar a R$ 56,5 bilhões. Caso o governo queira reduzir o bloqueio a R$ 23 bilhões, no entanto, terá de propor uma alteração não na LDO, mas no próprio arcabouço fiscal, ou reconhecer a necessidade de mudar a meta fiscal.

Se toda essa discussão serve para algo, é para mostrar o quanto o debate sobre a relevância da política fiscal ainda precisa avançar no País. Desvios, manobras e interpretações criativas semelhantes servem apenas para enfraquecer o arcabouço recém-aprovado. Foi assim que o finado teto de gastos e o sistema de metas de superávit primário que o antecederam foram desmoralizados.

Em vez de investir em reformas, o governo perde tempo e energia em discutir a proporção do contingenciamento, instrumento que nem sequer é um corte de fato, mas apenas um mecanismo de bloqueio temporário de despesas que visa justamente a facilitar o alcance da meta.

O debate deixa implícito que a preocupação do governo não é cumprir a meta, mas apenas afastar a possibilidade de o presidente ser punido pelo descumprimento do objetivo. A única forma de se livrar desse risco é adotar todas as medidas necessárias para atingir a meta – ou seja, efetivar o contingenciamento de despesas que a Lei de Responsabilidade Fiscal preconiza e que o arcabouço fiscal jamais invalidou.