Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião|A filiação derivada da afetividade

Há avanços legais que permitem que as famílias recasadas e reconstituídas sejam legítimas e, agora, reconhecidas sobretudo como ‘família’

Quando o assunto é o aborto, logo vêm à mente as discussões calorosas sobre os direitos do nascituro e da mulher genitora. Em seguida, não raras vezes, tomam lugar à mesa a expressão “aborto paterno” e a percepção de moralidade e legalidade que se dá aos genitores que praticam o abandono afetivo e material.

Vem à pauta, com o mesmo fervor, a evidência anedótica com os números extravagantes (e vergonhosos) de brasileiros e brasileiras que não contam com o reconhecimento paterno em seu assento de nascimento. Sem contar as vezes em que pais assumem voluntária e espontaneamente a paternidade do(a) filho(a), com registro de seu nome no lugar do reservado ao pai biológico, na modalidade de adoção à brasileira, criam vínculo com a criança, mas, apesar desse reconhecimento, batem às portas do Judiciário, depois, para cancelar o dito registro e requerer a retirada de seu sobrenome do assento de nascimento.

O Judiciário já volveu os olhos para esses pedidos egoístas, motivados pelo fim de relacionamentos, e negou pretensões de anular o registro em que se assumiu a paternidade, como aconteceu neste processo paulista número 1004997-60.2019.8.26.0481, em que o juiz apontou: “Laços paternos não se dissolvem por liberalidade dos pais. Sabe-se que vínculo biológico, ignorado tanto pelo requerente quanto pela mãe do requerido no momento do registro de nascimento, não tem o condão de descaracterizar a paternidade espontaneamente assumida, mesmo após o término da relação do casal”.

No meio de tudo isso, esquecemos de mencionar a especiosidade do despertar da comunidade jurídica para a multiparentalidade e o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva, aquela despida de ascendência genética, mas ligada pela relação social e afetiva.

Embora o assunto seja ainda tímido para muitos, a justiça já se debruçou há anos para avaliar o assunto. A resposta chegou em 2016, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) ecoou a voz de tantos brasileiros e brasileiras que não se enquadram no conceito da família tradicional. A normatividade deu lugar à possibilidade de que as famílias recasadas e reconstituídas possam ser levadas à centralidade do ordenamento jurídico-político, para reconhecer as suas capacidades de autodeterminação, autossuficiência e de liberdade de escolha dos próprios objetivos em termos de unidade familiar.

A Corte fixou o entendimento segundo o qual a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios, proibindo que o governo se imiscua nos meios eleitos pelos cidadãos para a persecução das vontades particulares.

Em 2017, o Brasil foi presenteado com a edição de uma norma (Provimento 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça), que passou a admitir a paternidade socioafetiva, que nada mais é senão o pedido de que seja incluído no assento de nascimento do(a) enteado(a) o nome do padrasto ou da madrasta.

Trata-se da paternidade e da maternidade construídas. Aquelas baseadas na relação afetiva e social, independentemente da questão biológica, agora reconhecida pelo Estado com a inclusão do sobrenome no assento de nascimento.

O reconhecimento da parentalidade socioafetiva não implica a retirada dos dados dos pais biológicos, mas tão somente garante a inclusão nos registros civis daquele que obteve o reconhecimento da paternidade ou maternidade por socioafetividade.

A pergunta que, inevitavelmente, se faz com frequência e será respondida neste texto é se há a necessidade de concordância dos pais biológicos para obter esse reconhecimento.

A resposta é não. Ora, no país do abandono parental, como seria possível tamanho avanço, se fosse necessária a chancela patriarcal ou matriarcal? Por mais absurdo que possa parecer, há casos em que o genitor ou a genitora, irresignado(a) com o reconhecimento da parentalidade por socioafetividade, recorre ao Poder Judiciário para perpetuar a sua ausência e impedir que aquele que (via de regra) faz as suas vezes conste no registro civil do(a) filho(a).

A noção de família tem contornos relevantes que se sobrepõem ao vínculo consanguíneo. A sua formação requer afeto, perdão, paciência, devotamento, solidariedade, atenção, transigência, ou seja, o terreno da filiação vai além da mera participação na concepção.

O vínculo biológico cede lugar ao da afetividade, cuja intensidade se nutre no cuidado constante, na valiosa presença e, sem dúvida, na dedicação de atenção. É isso que a lei protege e, não ignorando a existência dessa situação, assegura que a realidade fática reflita também a documental.

O procedimento para efetivar esse direito é simples. Na hipótese de o pedido ser formulado pelo(a) enteado(a) maior de idade, não é necessário processo judicial, basta apresentação do pedido diretamente ao oficial de registro, e, quando se trata de um menor, o pedido é feito ao juiz, bastando, em ambos os casos, a manifestação de concordância daquele que constará como pai ou mãe no registro de nascimento e de casamento do interessado.

De toda forma, a boa notícia é que, no meio de tanto desamparo infantil, há avanços legais que permitem que as famílias recasadas e reconstituídas sejam legítimas e, agora, reconhecidas sobretudo como família.

*

SÃO, RESPECTIVAMENTE, ADVOGADA PÓS-GRADUADA EM PROCESSO CIVIL PELA PUC-SP; E ADVOGADO, MESTRANDO EM PROCESSO CIVIL PELA USP

Opinião por Luma Zaffarani e Guilherme Vinicius Justino Rodrigues