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Opinião|ChatGPT vai à escola

A tecnologia pode ser empregada com proveito na formação dos estudantes, mas esse emprego deve ser fruto de deliberação

Por Marcelo de Azevedo Granato

O governo do Estado de São Paulo pretende utilizar o ChatGPT na produção de aulas voltadas aos alunos dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio da rede pública. Segundo a Secretaria da Educação do Estado, as aulas elaboradas pelos professores curriculistas, especializados na produção do material didático, serão “aprimoradas pela inteligência artificial com a inserção de novas propostas de atividades, exemplos de aplicação prática do conhecimento e informações adicionais que enriqueçam as explicações de conceitos-chave de cada aula”.

Ainda de acordo com a secretaria, todo o material criado via inteligência artificial passará por revisão de profissionais de educação: “Esse conteúdo será avaliado e editado por professores curriculistas em duas etapas diferentes, além de passar por revisão de direitos autorais e intervenções de design” (Governo de SP vai usar o ChatGPT na produção de aulas dos ensinos fundamental e médio, 17/4/2024).

Ainda não se conhecem os detalhes desse projeto, mas uma saudável prudência transparece nas informações divulgadas pela Secretaria da Educação. Bem diferente do que se viu no ano passado, quando veio a público o material digital produzido pela mesma secretaria para os alunos da rede, contendo erros de informação histórica, geografia e matemática. Conforme noticiado, o material indicava que a cidade de São Paulo possuía praia, a Lei Áurea não fora assinada pela princesa Isabel e uma divisão de 36 por 9 dava 6. Difícil não pensar numa inteligência artificial nessa hora. Inclusive por estarmos mais do que acostumados a delegar às máquinas as mais diversas funções.

Nossa locomoção, há tempos, pode prescindir dos nossos passos. Nossa audição não é mais indispensável, por exemplo, para a afinação de um instrumento musical. Na culinária, os timers dos eletrodomésticos substituem nossa percepção visual. Mais recentemente, as máquinas também passaram a emular nosso órgão de controle, o cérebro. Ferramentas como o ChatGPT são capazes de identificar padrões em grandes conjuntos de dados, gerando artigos técnicos, resumos, traduções, diálogos sempre mais precisos, coerentes, corretos. A diversidade de aplicações e a exatidão do seu fazer são estonteantes. Seus avanços parecem irrefreáveis.

Essa disparada tecnológica, então, dá vazão a uma lógica peculiar, que conta com muitos aderentes (mais ou menos conscientes dessa adesão). Por essa lógica, são os meios tecnológicos que comandam nossos fins, e não o contrário. Assim, sobrevindo uma nova possibilidade tecnológica, cabe à sociedade adotá-la. Por outro lado, muitos veem nesse cenário o ocaso da humanidade (refém, de um ponto de vista emocional, cognitivo e prático, da inteligência artificial).

Seja como for, a substituição do ser humano pela máquina tem caráter instrumental, isto é, nós alimentamos a inteligência artificial para o atendimento de fins traçados por nós, humanos. Nenhuma versão do ChatGPT tem sensibilidade ou consciência do que é um propósito virtuoso, oportuno ou prejudicial. Tanto que seu uso malicioso já é uma preocupação mundial.

Daí a necessidade, no campo da formação escolar, da prévia definição do objetivo e alcance do ensino por meio da inteligência artificial, sua articulação com os conteúdos curriculares e o acompanhamento da interação entre alunos e tecnologia por profissionais de carne e osso. Deve ser deles a última palavra sobre os conteúdos a serem apresentados aos alunos, como organizá-los, exercitá-los, quais enfatizar/problematizar, como avaliá-los.

Não custa lembrar que a escola deve educar, não simplesmente adestrar, nossos jovens. E a educação naturalmente vai além da repetição, seja verbal ou digital, do teor de manuais; vai além, inclusive, da formação de profissionais para atuar no mercado de trabalho. A educação deve ultrapassar a profissionalização para alcançar uma formação cultural ampla, que garanta a livre expressão da criatividade e da curiosidade humana, que seja ciosa da sua autonomia e interdependência, do ambiente que a circunda, da dignidade dos seus semelhantes (somos mais do que nossas profissões). Esse é um trabalho essencialmente humano.

É por isso que o emprego da tecnologia no campo da educação deve mover-se cuidadosamente. Vide o ocorrido na Suécia, que decidiu pela volta dos livros impressos às salas de aula baseando-se em estudos que mostraram que quem lê o livro impresso compreende melhor seu conteúdo do que quem lê a mesma obra no computador (ao contrário do que o governo paulista quase fez no ano passado, ao anunciar e depois desistir de abrir mão de 10 milhões de livros didáticos para usar powerpoints).

Em suma, a tecnologia pode ser empregada com proveito na formação dos estudantes – por exemplo, auxiliando-os de maneira personalizada em seu desenvolvimento escolar –, mas esse emprego deve ser fruto de deliberação, ou seja, de uma decisão pensada, discutida e supervisionada por responsáveis políticos, especialistas da área e comunidade escolar. Sem tecnofobia, nem tecnofilia.

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DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FADI E FACAMP

Opinião por Marcelo de Azevedo Granato

Doutor em Direito pela USP e pela Università degli Studi di Torino, integrante do Instituto Norberto Bobbio, é professor da Fadi e Facamp