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Opinião|Mentalidade alargada

Contra o isolamento, uma pessoa com mentalidade alargada busca a imparcialidade e a imaginação. Um norte valioso nestes tempos de opiniões imediatas e inabaláveis

O que não falta no debate brasileiro sobre o conflito entre Israel e o Hamas é convicção. Até mesmo fora das redes sociais, em textos na imprensa, a recapitulação histórica, o contexto político-social e o Direito Internacional que informam o duradouro enfrentamento entre israelenses e palestinos são muitas vezes só ornamento para a condenação de um ou do outro lado. Condenação, no entanto, tingida de silêncio quanto a condutas reprováveis daquele que se apoia. Como escreveu Luiz Sérgio Henriques neste espaço, “por mais dolorosa que seja a constatação, uma nação pode ser ao longo do tempo vítima e algoz, perseguida e perseguidora” (A política democrática desafia a irrazão, 22/10/2023).

No canteiro de desinformação e ódio das redes sociais, a impressão é a de que, se você adere a uma certa ideologia, deve estar ao lado dos palestinos ou mesmo do Hamas; se adere a uma outra, seu lado é o de Israel (é mais ou menos o que algumas pesquisas revelam, aqui no Brasil, sobre a confiança no Supremo Tribunal Federal: quem apoia Jair Bolsonaro repudia o tribunal; quem o rejeita/apoia Lula confia no STF).

É claro que nem tudo é relativo e que o debate é livre, podendo ser instruído por perspectivas – e críticas, reconhecimentos, condenações, recomendações – diversas. Ninguém está obrigado a revistar ou graduar todos os aspectos da questão antes de se posicionar sobre ela. O problema é que, em muitos casos, uma tal revista ou graduação não faria nenhuma diferença. Parece que estamos diante de dois tribunais, e não de um debate.

Faz lembrar um grande livro do longínquo ano de 1790, Crítica da faculdade de julgar, escrito por um dos maiores filósofos da História, Immanuel Kant. Trata-se de um livro denso, cujo foco nem é a política, mas que, em seu exame do juízo estético, deixa rastros que podem ser apropriados para o universo político. Como quando enuncia as chamadas “máximas do entendimento humano”: 1) pensar por si; 2) pensar no lugar de qualquer outro; 3) pensar sempre em acordo consigo próprio.

A primeira máxima, diz Kant, é a “da maneira de pensar livre de preconceito; a segunda, a da maneira de pensar alargada; a terceira, a da maneira de pensar consequente”. A primeira máxima volta-se ao pensar por si mesmo, à autonomia na reflexão. A segunda máxima reclama que essa reflexão autônoma ainda seja comparada com outros possíveis modos de pensar/pontos de vista. Então, o terceiro e mais difícil passo – “a terceira máxima (...) é a mais difícil de alcançar-se” – reside na formulação de um pensamento consequente ou “em acordo consigo próprio”.

Particularmente a respeito da segunda máxima, Kant diz que “uma pessoa com maneira de pensar alargada (...) não se importa com as condições privadas subjetivas do juízo (...) e reflete (...) desde um ponto de vista universal (que somente pode determinar enquanto se imagina no ponto de vista dos outros)”. Ou seja, uma pessoa com mentalidade alargada toma em consideração outros pontos de vista possíveis diante de determinado evento, e o faz de modo a livrar-se ao máximo daquelas condições pessoais que poderiam restringir seu julgamento. Contra o isolamento, ela busca a imparcialidade e a imaginação.

Esse é um norte valioso nestes tempos de opiniões imediatas e inabaláveis. Opiniões fundadas em premissas que corroem o solo onde convergências e divergências podem se estabelecer, já que desfavorecem qualquer sentido de comunidade, colaboração ou confiança interpessoais, e são acompanhadas, por vezes, de um descolamento ostensivo e convicto da realidade. Desorientação na realidade e desconfiança das pessoas não favorecem debates; favorecem a desqualificação de interlocutores, o insulamento de grupos, até mesmo a violência (do que tivemos prova na eleição presidencial passada).

Nessas horas, a voz de um grupo específico de indivíduos costuma(va) distinguir-se: aqueles a quem normalmente chamamos de intelectuais. Não que eles sejam garantes do certo e do errado, oráculos. Ao contrário: “A tarefa dos homens de cultura é, mais do que nunca, a de semear dúvidas, não a de colher certezas. De certezas (...) estão cheias, transbordantes, as crônicas da pseudocultura dos improvisadores, dos diletantes, dos propagandistas interessados” (Norberto Bobbio, Política e cultura).

A voz dos intelectuais ressoa(va) por força de seu comedimento e ponderação, por seus alertas sobre o que não devemos nos esquecer. Como neste trecho, de todo aplicável ao tema deste artigo, de Hannah Arendt: “Embora o mundo comum seja o terreno comum a todos, os que estão presentes ocupam nele diferentes lugares, e o lugar de um não pode coincidir com o de outro, da mesma forma como dois objetos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. Ser visto e ouvido por outros é importante pelo fato de que todos veem e ouvem de ângulos diferentes” (A condição humana).

Mas a clareza dessa mensagem de Arendt tem chances de encontrar solo fértil? Tomara que algum influencer a conheça.

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DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FADI E FACAMP

Opinião por Marcelo de Azevedo Granato