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Tradutor e ensaísta, Luiz Sérgio Henriques escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|A política democrática desafia a irrazão

À democracia e aos direitos humanos devem estar submetidas as identidades enrijecidas e extremadas

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Pelo que se diz, os antigos soviéticos não foram os únicos adeptos do whataboutism, a técnica de escapar de problemas incômodos embaraçando o oponente com suas próprias contradições, reais ou supostas, mas terão sido mestres nesta arte sofística. A URSS era acusada de não respeitar as liberdades ditas negativas, a autonomia do indivíduo diante da máquina do Estado? O whataboutism consistia em esquivar-se de qualquer resposta concreta e perguntar agressivamente pelas liberdades positivas, as que reforçam o indivíduo social e economicamente, alegadamente em falta nas sociedades ocidentais. O resultado era um interminável diálogo de surdos, que encapsulava de propósito cada participante na sua trincheira e tornava remota, ou nula, a possibilidade de entendimento.

O conflito entre Israel e Palestina traz em si muito desta predisposição ao não diálogo, como se, por exemplo, antes da Nakba, a diáspora palestina de 1948, não pudesse ter havido o Holocausto ou como se admitir uma das catástrofes equivalesse a cancelar a outra. Perde-se, assim, a ideia da complexidade inerente aos fatos da História, realisticamente sublinhada por um intelectual do peso de Yuval Noah Harari: por mais dolorosa que seja a constatação, uma nação pode ser ao longo do tempo vítima e algoz, perseguida e perseguidora.

Bem verdade que o Holocausto ocupa um lugar único entre as tragédias do século passado. Nele se combinou, sob forma de um “claro enigma”, o caráter simultaneamente banal e absoluto do Mal. Alguns dos fundamentos civilizacionais tiveram de ser refeitos a partir de então. A ONU e sua Carta de Direitos assinalaram um momento alto de universalização das liberdades – negativas e positivas – que devem definir o indivíduo moderno. O conceito de genocídio é filho direto daquela tragédia. E nunca mais pudemos esquecer, no inferno dos campos e por obra dos nazistas, o assassinato massivo, entre outros, de judeus, adversários políticos, pessoas com deficiência, homossexuais, religiosos de crenças minoritárias.

O impulso moral daí advindo contribuiu para a edificação do lar nacional judeu com apoio dos Estados Unidos e da União Soviética. O judeu errante, inquietante personagem multissecular que carregava em si, unicamente por ser judeu, a marca da suspeição, pôde enfim reencontrar suas raízes territoriais mais longínquas. Feita essa pungente admissão, não há nada que nos impeça de lançar um olhar de profunda empatia para os milhões de palestinos que passaram a superlotar campos de refugiados em lugares nos quais nem sempre foram bem-vindos. Se agora voltamos, com horror, a falar de pogroms e unidades nazistas de extermínio, os campos de Sabra e Chatila, habitados por refugiados no Líbano e dizimados por milícias cristãs, também podem ser incluídos no rol infinito do sofrimento humano.

A democracia e os direitos humanos são expressões da razão laica que se afirmaram, apesar de tudo, em meio aos escombros de guerras e perseguições. A ambos – à democracia e aos direitos – devem estar submetidas as identidades enrijecidas e extremadas, como as que reclamam irracionalmente toda a terra de Israel para o povo judeu ou, o que dá na mesma, a eliminação de Israel como corpo estranho. Atores não razoáveis, tomados de ódio e um sentido degradado da religião e do absoluto, fazem continuamente lances que, ao contrário do que parece, denotam cálculo frio e deixam pouco ou nenhum lugar para o acaso. A ideia básica é induzir o inimigo a dobrar a aposta na loucura e dar seguimento à espiral sem fim de violência.

Em meio aos fundamentalismos e à linguagem bruta das armas, que constituem o cerne mais duro da antipolítica, o caminho da política, apesar de tudo, pode contar com ao menos dois recursos essenciais. Desde logo, a democracia israelense resiste, como vimos nos últimos meses, quando milhares de pessoas lotaram ruas e praças contra a corrosão das instituições patrocinada por Benjamin Netanyahu e seu gabinete de fanáticos da extrema direita. Uma corrosão que, entre outras coisas, minava o discurso público com o repertório contemporâneo do nacional-populismo – ataque ao sistema de freios e contrapesos, difusão de fake news e teorias da conspiração, divisão da opinião pública.

O segundo recurso é a esperança de ver renascer o movimento palestino propriamente político, pacífico e de massas, superando a estratégia do terror mais uma vez posta em ação na tragédia que, em 7 de outubro, deflagrou o ciclo de violência que agora põe abaixo a Faixa de Gaza. Na verdade, houve momentos, particularmente por ocasião dos Acordos de Oslo, em que Yasser Arafat, a OLP e o Fatah pareceram encarnar o processo virtuoso mediante o qual um povo disperso e fragmentado se faz Estado – um Estado laico e democrático –, fadado a dividir com o vizinho fronteiras estáveis e seguras, além de um futuro compartilhado.

Se de fato ainda existem ou existiram no passado, nada impede que estes dois recursos possam ser reativados e permitam compromissos e soluções intermediárias que são o melhor fruto do exercício moderno da política.

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TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL

Opinião por Luiz Sérgio Henriques

Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das Obras de Gramsci no Brasil

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