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Opinião|Mudanças climáticas e justiça racial ambiental

É exigível colocar o negro brasileiro no centro das políticas públicas preferenciais de combate a eventos climáticos extremos

Por José Vicente

Se as áreas territoriais mais severamente castigadas pelas mudanças climáticas serão aquelas onde as infraestruturas inexistem, se nelas os riscos à integridade e à segurança física serão mais intensos e arbitrários, e se os impactos das intempéries de toda natureza afetarão aqueles que têm menos recursos disponíveis e acesso aos bens, produtos e serviços de segurança e conforto climático, por si só o desafio delimita de forma avassaladora a extensão das dificuldades colocadas no provimento de meios e medidas para mitigar e reparar os danos e malefícios inexoráveis dos eventos climáticos extremos. E quando sobre todo esse cenário de fragilidade e iniquidade se sobrepõe um vetor unificador e decisivo, como é o caso da cor e da raça das pessoas num ambiente social em que esses fatores significam não direitos, limitações, imobilismos e impossibilidades?

Num país e sociedade que por conta e ação do racismo estrutural e estruturante a quase totalidade daqueles que serão vitimados pelos impactos e sequelas dos extremos são na sua maioria pobres e periféricos imobilizados pelo racismo que estrutura a vida no ambiente, como garantir isonomia e equidade na produção e disponibilização de políticas e meios eficientes e eficazes de resolução? Num país onde a miséria e a pobreza têm cor e territorialidade e os negros representam 70% dessa camada social; num país em que essa maioria dos pobres brasileiros habita os espaços degradados, inseguros e periculosos dos morros, encostas, mananciais e zonas de riscos, e onde as enchentes, temperaturas elevadas, poluição, inversões térmicas profundas e limitações econômicas e de infraestrutura significarão castigo intenso redobrado, como assegurar proporcionalidade adequada para cuidar e integrar o todo e a parte?

Essas precisariam ser as questões palpitantes do dilema e flagelo ambiental, que justamente pela sua emergência e inevitabilidade estrutura o centro dos debates, o lugar e o público-alvo das intervenções de promoção e resguardo da segurança ambiental, seja na COP de Dubai ou do Azerbaijão, seja, sobretudo, na rotina dos embates e produção da solução do gerenciamento atual e permanente do clima e da sustentabilidade ambiental no Brasil.

Se as desigualdades sociais e econômicas crônicas do nosso país, por natureza, tornam quase impossível enfrentar e combater o impacto das externalidades e garantir tratamento justo para os grupos mais contundentemente acossados pelos seus efeitos iníquos e destrutivos, quando a elas se sobrepõem as desigualdades de cunho racial profundo e perverso que alcança a maioria dos indivíduos do País, além de desafio dobrado torna-se indispensável e exigível moral e eticamente priorizar essa evidência como um determinante imperativo de todas as reflexões, formulações e construções das estratégias e dos mecanismos que pretendam intervir, modificar e transformar de forma decisiva as diversas implicações e efeitos dessa realidade.

Sem essa atenção dedicada e sem a definição dessa questão como objeto central das preocupações, o Brasil corre o risco de ver todos os seus recursos econômicos, tecnológicos e de infraestrutura serem sugados e dirigidos para os centros hegemônicos e de influência política e econômica sem que quaisquer desses cenários e problemas sejam alcançados, assegurados uma solução e mitigados, o que significará de novo que os negros restarão abandonados, excluídos, descriminados e desigualizados; e que o País restará inviabilizado nos seus objetivos e compromissos, e apartado e segregado racial e ambientalmente.

Justamente por isso, e para que não repitamos os erros, equívocos e injustiças do passado escravocrata e da exclusão racial e ambiental do presente, na proteção para a preservação e defesa do meio ambiente e sua sustentabilidade de um lado, e no enfrentamento, combate e mitigação da destruição ambiental e dos efeitos dos extremos climáticos de outro, se torna exigível e inderrogável colocar o racismo ambiental e sua vítima direta, o negro brasileiro, no centro dos debates, das ações e das medidas e políticas públicas preferenciais e prioritárias.

É indispensável, por isso mesmo, que a construção da transição energética, os esforços tecnológicos para organização e gerenciamento dos insumos da nova abordagem e administração da sustentabilidade ambiental, assim como as estratégias para estimulação e valorização da economia descarbonizada, não só contemplem necessariamente as externalidades produzidas pelo racismo ambiental, mas também garanta os aportes de recursos diretos e aloque investimentos que promovam e exijam contrapartidas sociais raciais objetivas e obrigatórias a todos os agentes que acessarem os recursos públicos e subsidiados que irão custear a transição e a produção da nova fisionomia social da economia sustentável. O caos climático antecipado pode e deve ser uma oportunidade de ouro para transformarmos o problema da exclusão, distorção e desigualização do racismo ambiental, numa solução virtuosa e perene de transformação e promoção de justiça racial e ambiental.

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ADVOGADO, PROFESSOR, MESTRE EM EDUCAÇÃO, SOCIÓLOGO, É REITOR DA UNIVERSIDADE ZUMBI DOS PALMARES

Opinião por José Vicente