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Opinião|O drama do ensino médico

Tentar facilitar o acesso da população ao atendimento é louvável, mas de alto risco quando não se atenta para o fator qualidade da formação dos futuros médicos

Ser médico é fascinante, pois mais que uma profissão para garantir a subsistência, é uma atividade que gera grande satisfação interior pelo bem que se pode fazer a outras pessoas.

Esse talvez seja o principal motivo da intensa procura por faculdades de Medicina, mesmo com um mercado de trabalho com perspectivas não muito favoráveis, em decorrência das baixas remunerações praticadas e, muitas vezes, das condições de trabalho. Aliás, essa situação só tende a se agravar, tendo em vista a abertura quase indiscriminada de faculdades de Medicina nas últimas duas décadas: passamos de cerca de 200 para 400 faculdades e de 10 mil vagas para mais de 40 mil vagas, o maior aparelho formador de médicos do mundo, maior que os Estados Unidos e a China, que têm populações maiores que a nossa.

Para agravar a situação, existem mais de 300 solicitações de abertura de novas faculdades, com liminares. Mesmo com o novo edital do Ministério da Educação, que tem a apreciada diretriz de restringir aberturas das liminares, abrem-se as portas para mais 6 mil novas vagas. Nesse ritmo, em breve irão se graduar ao redor de 50 mil novos médicos a cada ano, com a triste perspectiva de que nem todos conseguirão atuar como médicos, apesar de seus sonhos – fora os altos custos para aqueles que estudam ou estudaram em faculdades privadas.

Sem dúvida, a população precisa ser assistida, mas a realidade é que existe uma má distribuição dos médicos pelo País, uma vez que estes se concentram em regiões com melhores oportunidades profissionais e que, indiscutivelmente, permitem condições mais favoráveis de vida e educação para os filhos. Em outras palavras, é mínimo o incentivo para um médico e sua família se fixarem em cidades pequenas e remotas, sem boas estruturas de atendimento.

A política do Mais Médicos parte da premissa de que, com a abertura de novas faculdades de Medicina, haverá no País médicos em abundância para atuar nas cidades desprotegidas (entenda-se, pequenas e sem estruturas locais favoráveis). Mas o fato é que os jovens médicos não tendem a se fixar nas regiões onde estudaram – algo bem conhecido em vários países, como Escócia, França e Estados Unidos –, o que em nosso meio já é percebido, mas ainda não quantificado.

Tentar facilitar o acesso da população ao atendimento é louvável, mas de alto risco quando não se atenta para o fator qualidade da formação dos futuros médicos. Diagnósticos ou tratamentos malconduzidos comumente prolongam o sofrimento, interferem negativamente no controle das doenças e ceifam vidas. Qualidade em Medicina é transcendental e é resultado de uma combinação equilibrada de conhecimento, experiência, bom senso e dedicação dos seus profissionais, que cada vez mais trabalham em equipes.

Quando a qualidade é limitada, torna-se patente o aumento de casos de erros e condutas inapropriadas. Daí vem a pergunta: a responsabilidade deve ser atribuída apenas ao médico ou entram na equação a faculdade que não prepara adequadamente seus alunos, o Ministério da Educação, que permite o funcionamento dessa faculdade, e, mais ainda, o sistema de saúde que não atende à demanda de exames e tratamentos?

A boa formação do médico está atrelada a dois fatores incontestes. O primeiro deles é o contato com professores que ensinarão não apenas matérias técnicas, mas também o fundamental comportamento ético e moral que deve nortear a vida do médico. Porém o fato é que não existem no mercado professores qualificados e titulados para ensinar à beira do leito que possam atender a tantas faculdades.

O segundo fator diz respeito aos centros de treinamento. Está-se partindo da premissa de que hospitais de atendimento do SUS se prestam quase que automaticamente para o ensino, o que é uma falácia, uma vez que a dinâmica do ensino é bastante distinta do atendimento, tanto em relação à estrutura do hospital quanto à sua capacitação ou interesse em relação ao ensino.

O que hoje existe para aceitar a abertura e, mais ainda, o funcionamento das escolas médicas não é suficiente. Elas não podem ser encaradas apenas como bom negócio, e, por outro lado, médicos não podem ser colocados no mercado de trabalho sem um mínimo de qualificação. É premente que sejam criadas eficazes barreiras que possam assegurar ensino correto, pois os futuros médicos vão lidar com a saúde e a vida da população. Dessa forma, corpo docente competente e qualificado e centros de treinamento devidamente avaliados e credenciados devem fazer parte das exigências para o funcionamento de qualquer faculdade. Mais ainda: é premente que se crie um programa de avaliação obrigatória de estudantes, assim como de faculdades e centros de treinamento, que devem passar por processos periódicos de acreditação.

Levando muito a sério o fator qualidade, é desejável que os médicos, ao longo da sua vida profissional, se submetam a algum tipo de avaliação obrigatória, que passa por frequentar programas de educação permanente. Esse é o único caminho para que possa oferecer à população atendimento de saúde mais seguro e digno.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE CIRURGIA DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA NACIONAL DE MEDICINA, PRESIDENTE DO CONSELHO DO INICIATIVA SAÚDE; E CONSULTOR INDEPENDENTE NOS SETORES DE SAÚDE E EDUCAÇÃO, MESTRE EM SAÚDE PÚBLICA (YALE) E DOUTOR EM ECONOMIA DA SAÚDE (LSE, LONDRES), DIRETOR EXECUTIVO DO INICIATIVA SAÚDE

Opinião por Raul Cutait e Carlos Del Nero