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Opinião|Os dramas do ensino médio

O presidente da República sugere que a nova lei pode ser aprimorada com participação de alunos e professores. Desse mato não sai coelho

O ensino médio vive três grandes dramas: não conseguimos formular e implementar uma política adequada; a maioria dos alunos chega com formação precária e sem condições de sucesso; e tudo isso decorre de ideias e políticas equivocadas que se apoiam, infelizmente, em elevado grau de consenso.

Um pouco de história. Até por volta de 1970 havia um ensino médio acadêmico e outro profissional. O acadêmico se dividia em opções de humanidades e ciências, geralmente ofertadas na mesma escola. O profissional se desdobrava em normal, técnico, contabilidade e agrícola, ministrado em escolas especializadas. Isso foi abolido e o ensino técnico ficou marginalizado. Na década de 1990, resolução do Conselho Nacional de Educação aumentou em mil horas a duração do ensino profissional, mudança que, somada ao advento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), praticamente extinguiu o técnico. Em 2019, apenas 8% de alunos do ensino médio estavam no técnico.

Na maioria dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e nos asiáticos, entre 30% e 70% dos alunos a partir dos 13 ou 14 anos de idade frequentam cursos médios em escolas profissionais especializadas. Alguns países começam a diversificar pouco antes ou pouco depois.

Nos EUA e no Canadá, são três as características marcantes. O médio acadêmico é diversificado, por isso as escolas são de porte considerável. Há uma gama razoável de opções para os alunos. O técnico se dá parte nessas escolas e parte nas especializadas, mas é feito sobretudo no nível pós-secundário (Community Colleges) ou por meio de sistemas de aprendizagem profissional promovidos pelas associações de classe – como é típico na construção civil. A Inglaterra tem um pouco de tudo na área de formação profissional, a partir do ensino médio.

Esses sistemas de formação profissional são consolidados, robustos e têm inúmeras vantagens. Uma delas é fornecer recursos humanos habilitados para o mercado de trabalho e formados em instituições cujo ethos os prepara para tal. Uma outra é a flexibilidade para o aluno que deseja seguir curso superior – o que varia são as exigências e o tempo para o seu cumprimento. Esses países estão atentos às mudanças no conteúdo, na forma e às novas exigências do mercado de trabalho.

Na maioria dos países industrializados, o médio acadêmico com foco no ensino superior também se caracteriza pela diferenciação. Nos países de influência francesa há mais rigidez; nos países de influência anglo-saxã, maior flexibilidade. Mas em todos vigora grau razoável de opções para os jovens, tanto em relação às disciplinas quanto ao nível de profundidade, o que forma verdadeiramente as elites acadêmicas.

Voltemos às nossas mazelas. Com o Enem, padronizamos o ensino médio e o pouco do ensino profissional existente ficou subordinado ao processo. E, como o Enem é voltado para a seleção para as universidades, o ensino médio ficou vinculado ao superior.

A reforma aprovada em 2018 tinha como objetivo mudar essa realidade, mas não saiu do papel porque é inviável em razão de dois grandes entraves. O primeiro é ideológico: prevaleceu a ideia de que o ensino médio deve continuar atrelado ao superior, isto é, todos os alunos precisam seguir um mesmo currículo, cujos conteúdos são aferidos pelo Enem, que, por sua vez, é a chave de acesso à etapa superior.

O segundo entrave é pedagógico: criaram-se “itinerários formativos” dissociados do que faz sentido tanto do ponto de vista do médio acadêmico quanto do profissional. Isso requer contorcionismo gigantesco de quem entende de ensino profissional – o que é desnecessário, bastaria usar uma nomenclatura aderente às disciplinas e ocupações. Na reforma, o profissional não foi concebido como preparação para o trabalho, e sim como conjunto de “disciplinas” a serem ministradas no contraturno.

Não vigora no Brasil a ideia de que a formação profissional requer ethos, cultura de formação. E nessa formação há espaço para o ensino de disciplinas básicas, mas de forma diferente do que se faz num curso acadêmico. Este desafio se torna ainda maior numa conjuntura de profundas mudanças tecnológicas e no mercado de trabalho.

Para dar certo, a reforma do médio dependeria, no nível federal, da diversificação do Enem, o que não ocorreu. E, no nível dos Estados, da consolidação das escolas acadêmicas e técnicas localizadas e estruturadas de forma a atingir economias de escala que permitam a oferta de opções reais para o aluno em suas áreas de especialização.

Para muitos, a reforma é boa e os problemas estão apenas na implementação. O fato de que nenhum Estado conseguiu implementar algo viável depois de cinco anos é apenas detalhe ou incompetência de 27 governantes?

Há modelos externos de sucesso que apontam caminhos. Internamente, temos a excepcional experiência de formação profissional do Sistema S, bastando que assuma a responsabilidade de expandir o que faz bem feito. O presidente da República sugere que a nova lei do ensino médio pode ser aprimorada com participação de alunos e professores. Desse mato não sai coelho.

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PRESIDENTE DO INSTITUTO ALFA E BETO

Opinião por João Batista Araújo e Oliveira