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Opinião|Povos deslocados

Quem está prejudicando o semitismo palestino é o antissemitismo direcionado ao povo judeu. Esse é o diagnóstico que deveria ter sido dado quando a doença começou

Por Alia Carol Maalouf

Imigrei para o Brasil em 1970, ano em que Rivelino, meu corintiano favorito até hoje, vencia a Copa do Mundo de Futebol. Era quando os 90 milhões de brasileiros entoavam Pra Frente Brasil e o ano em que meu pai bradava aos quatro ventos que finalmente havíamos atracado no país do futuro. De lá para cá, muita coisa aconteceu e tenho muito para contar, mas isso é para quem me conhece como a conterrânea brasileira.

Antes de tudo isso, nasci como Alia Carol Maalouf em Beirute, capital do Líbano, filha de um fazendeiro do Vale Do Beca, o “cesto de pão” do Império Romano. Hoje, é um dos maiores centros populacionais xiitas, o segundo maior ramo de crentes do islã que segue Ali, genro de Maomé, no mundo.

Quando nasci, naquele ano de 1964, minha família fazia parte da então maioria cristã que lá habitava. Não entrarei em detalhes sobre o motivo pelo qual, nos seis anos seguintes, fomos nos tornando uma minoria – algo que acontecia em todo o Líbano, predominantemente e desde muito um país considerado cristão no Oriente Médio. Tanto que fui registrada como católica, apostólica, romana na minha certidão de nascimento. Mas isso também é outra história.

Lembro-me de tardes na varanda da casa da fazenda, brincando com os filhos de amigos dos meus pais que vinham visitar. Muitas vezes, eram muçulmanos, acompanhados de amigos judeus, e na maioria das vezes riam e bebiam arak. Até o dia em que as risadas foram diminuindo. Não só para nós, mas para todos os libaneses que se sentiam privilegiados por terem seu país conhecido como a Paris ou a Suíça do Oriente Médio.

Pouco a pouco, isso foi mudando e nos sentimos cada vez mais como os hebreus que, liderados por Moisés por volta do ano 1800 a.C., fugiram do que hoje é a Jordânia para o Egito, onde foram escravizados por muitos séculos até a grande fuga conhecida como Êxodo. Não havia Israel.

Provavelmente nos sentimos como os povos que hoje formam a denominação palestina e que, em 1517, foram massacrados pelo Império Otomano dos turcos.

Ao longo da História, o que hoje se tenta denominar de Palestina foi governada por numerosos grupos, incluindo os assírios, babilônios, persas, gregos, romanos, árabes, fatímidas, turcos seljúcidas, cruzados, egípcios e mamelucos. Mas, de cerca de 1517 a 1917, o Império Otomano governou grande parte da região. Isso até a 1.ª Guerra Mundial, em 1917, quando a partir de então a maioria dos historiadores e jornalistas começou a dar suas versões dos acontecimentos que se seguiram.

Somos povos semitas. Com crenças diferentes, mas o mesmo povo em sua essência.

Fomos deslocados, massacrados e arrancados de casa por terceiros. Vagamos pelo mundo, perseguidos pelos mais variados preconceitos, e alguns inclusive passaram por uma limpeza religiosa na forma de genocídio, numa Europa dita civilizada nos anos 1940. Um genocídio inexplicável, perpetrado por alemães e austríacos que – pasmem – contaram com a ajuda e o apoio de soldados advindos da região dita palestina. Difícil de entender.

Mas, enquanto cristãos libaneses se espalhavam pelo mundo e se adaptavam melhor, por fazerem parte da religião predominante dos povos do Ocidente, o mesmo não se pode dizer daqueles que seguiam religiões islâmicas ou ramos do judaísmo. Isso, por si só, viria a ser um problema, visto que, mesmo seguindo a mesma religião, nem todos concordavam entre si. Nem os seguidores do islã nem os seguidores do judaísmo. Vamos lembrar que o mesmo ocorre entre cristãos.

Mas o desejo de todos nós de voltarmos para casa nunca nos deixou. Nunca me deixou. Sou uma libanesa deslocada e uma brasileira por exílio.

A grande maioria cristã provavelmente jamais voltará. É, também, uma minoria no coração dos vizinhos e irmãos árabes. Como retornar ao lugar onde todo cristão libanês teve e até hoje tem sua própria história de massacres e infortúnios? As razões são muitas.

Tocar no assunto terrorismo é delicado e complexo, e eu me recuso a comentá-lo desde 1970, mas, como o momento exige, escolhi falar do caso que conheço, pois trata da minha gente – se é que isso realmente existe. Afinal, somos todos seres humanos. Vou falar de Damour. O que aconteceu em Damour? O que é Damour? Damour é o resultado direto daquilo que hoje se conhece como “ações” de grupos fundamentalistas radicais, ou fanáticos, ou terroristas, que alegam falar em nome de diferentes povos semitas, quando, na verdade, falam em nome de interesses próprios.

Em 9 de janeiro de 1976, data do meu aniversário, terroristas (recuso-me a nomear o grupo, para não legitimar algo ilegítimo) sitiaram a cidade majoritariamente cristã de Damour, ao sul de Beirute, cortando água, suprimentos e eletricidade. Logo após, proibiram a Cruz Vermelha de entrar na cidade para evacuar os feridos. A cidade foi submetida a intenso bombardeio a partir de 13 de janeiro e pelos dois dias seguintes. Como muitos corpos foram desmembrados, somente cabeças puderam ser contadas, e o antigo cemitério cristão foi destruído, com seus túmulos profanados. Morreram ali 300 cristãos.

Não foi o primeiro massacre nem o último da região. Houve muitos, a grande maioria em nome de Alá. Quanta ironia. Após o massacre, um grande número de famílias cristãs deixou o Líbano e se estabeleceu ou emigrou para outros continentes e países, como África, Europa, Canadá, Austrália e Brasil.

Durante tudo isso, as brigas internas, pelos mais variados motivos, continuavam; brigas que o mundo todo, hoje, em 2023, torce para que se resolvam. Mas há um fator dominante e complicador que não tornará esta tarefa fácil. Infelizmente – e possivelmente – nada será resolvido enquanto não houver um consenso mundial e entre as nações sobre o que é terrorismo, um mal que hoje assola o mundo na forma de um tsunami de sangue.

É fato que o povo palestino sofre, e não é de hoje. Sofre desde muito antes da criação de Israel ou da não criação da Palestina. Sofre os sintomas cruéis de um mal, um câncer, muito antigo e resistente.

Como todo câncer, o diagnóstico é essencial para a cura. Sem o diagnóstico correto, fica muito difícil encontrar o tratamento certo, que elimine as células ruins e mantenha as boas vivas. O grande problema é que ninguém quer fazer esse diagnóstico. Ninguém quer porque a doença tem um nome bem feio, assim como todo câncer agressivo. Chama-se antissemitismo.

E é aí que mora o grande problema. O corpo todo – neste caso, o Oriente Médio em sua totalidade – é formado por células semitas. Porém a quimioterapia que tem sido repetidamente aplicada, desde os primórdios dos tempos, tem sido mais prejudicial ao corpo do que a própria doença. Uma quimioterapia que insiste em atacar somente um tipo de célula semita.

Neste contexto, é como se o médico, seja ele equivocado, despreparado ou mal-intencionado, dissesse ao paciente que as células do seu fígado estão matando as células do seu pâncreas, quando, na verdade, o problema é o tratamento.

Enquanto houver antissemitismo (quimioterapia) direcionado a um só órgão deste corpo, nada vai mudar. Apenas se aproximam a morte e a falência de todos os órgãos.

Vamos ao paralelo: quem está prejudicando o semitismo palestino é o antissemitismo direcionado ao povo judeu. Esse é o diagnóstico que deveria ter sido dado quando a doença começou. Agora, é como um câncer que insiste em retornar porque a medicação está matando todas as células.

Seja lá qual for a intenção ou quem tenha feito este diagnóstico equivocado lá atrás, continua causando danos por intermédio de discípulos, sejam eles mal preparados ou mal-intencionados, que usam este diagnóstico errado para fazer o paciente (o Oriente Médio em sua totalidade) piorar. Quantas vezes forem necessárias, até esgotá-lo de toda sua riqueza.

Se, para muitos, o Hamas – e não posso deixar de citá-lo – é legítimo para alguns que alegam que foi eleito pela população palestina, pergunto, então: por que até hoje este “rico governo” não providenciou água e eletricidade para seu território de Gaza? Por que Gaza continua sendo um território sem governo? Por que não se organizaram como um governo internacionalmente reconhecido, para então negociar com a ajuda de países árabes e suas possíveis sanções direcionadas ao Ocidente? O que foi feito com os milhões em doações recebidos deste mesmo Ocidente e de países árabes? Para que foram usados esses milhões? Por que não temos uma Palestina formal?

Talvez a resposta não esteja onde você procura.

Quando você fica horrorizado com o sofrimento dos palestinos causado por Israel, mas não fica nem um pouco horrorizado com o sofrimento que o Hamas lhes causa, com a ajuda humanitária que o Egito lhes nega ou com o descaso da Jordânia em não aceitá-los, isso não faz de você um pró-Palestina. Faz de você um anti-Israel.

Isso todo mundo sabe. Mas finge que não.

E, então, chegamos aos dias de hoje, tempos em que poucos conhecem essas histórias, mas muitos acreditam conhecer a verdade e possuir a solução. Quantos equívocos! Quanta desinformação! Quantos interesses conflitantes e quantas plataformas disseminando o que chamo de “ignorância assassina”, que mata talvez até mais do que armas!

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RADIALISTA, CONSELHEIRA PARA O TERCEIRO SETOR, É FORMADA EM COMUNICAÇÃO SOCIAL PELA ESPM E FILOSOFIA PELA PUC SP

Opinião por Alia Carol Maalouf