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Opinião|Racismo universitário

A USP, sempre pioneira, erra agora ao instituir cotas para candidatos pretos, pardos e indígenas em concursos públicos para docentes

Em 22 de maio de 2023, o Conselho Universitário da Universidade de São Paulo (USP) regulamentou a adoção de políticas afirmativas para pretos, pardos e indígenas (PPI) a serem usadas na contratação de docentes e admissão de servidores técnicos e administrativos. Bancas de heteroidentificação serão responsáveis por averiguar a validade da autodeclaração feita pelo candidato PPI no processo de seleção.

A USP, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Universidade Estadual Paulista (Unesp) já usam comissões de averiguação étnica para confirmar a autodeclaração de estudantes PPI que competem para entrar nas universidades públicas paulistas, mas é a primeira vez que tais comissões serão usadas na admissão de professores e demais servidores.

O uso de bancas étnicas não é só extremamente perigoso, como mostra a História, mas também inviável em um país miscigenado como o nosso. Por mais bem-intencionados que sejam os membros de tais bancas, as decisões só podem ser fruto de “achismo” pessoal, o que colide com a missão universitária de se pautar pela razão.

O reitor da USP, Carlos Gilberto Carlotti Jr., declarou ao Jornal da USP, em 22 de maio passado, que a adoção de políticas afirmativas para a contratação de docentes e demais servidores PPI é uma “decisão histórica”. Mas, a nosso ver, ela só se qualificaria como histórica por ser uma das mais equivocadas que a universidade já tomou.

Não se questiona aqui suas boas intenções, mas, sim, a estratégia de se usar leis raciais “boas” no presente para se remediar leis raciais más do passado. Leis raciais não se cancelam; elas só se somam, levando a mais divisão e ressentimento no futuro.

E há mais: a decisão da USP implica mau uso de recursos públicos. Senão vejamos: a principal fonte de financiamento das universidades públicas paulistas vem da alíquota de 9,57% do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS), pago por todos os consumidores, incluindo os mais pobres. Isso só se justifica se as universidades públicas paulistas funcionarem como um investimento de longo prazo, selecionando e treinando nossos jovens mais talentosos por meio do melhor corpo docente possível, independentemente de cor, raça, credo, orientação sexual e tudo mais.

Ao instituir cotas na contratação de docentes para indivíduos PPI, a universidade abre mão de ter os melhores quadros, com os recursos públicos disponíveis, em nome de uma política antissocial que coloca em segundo plano a formação das futuras gerações (PPI ou não) da mesma sociedade que a financiou.

Há dez anos, o governo de São Paulo instituiu o programa de cotas sociais para o ingresso de estudantes nas universidades públicas paulistas. Esse programa, mesmo que paliativo, tinha o correto intuito de corrigir a injustiça de colocar lado a lado para concorrer estudantes preparados por excelentes escolas privadas com outros de escolas da rede pública sabidamente deficientes.

Na falta de solução melhor, acertava o Estado quando reservava um certo número de vagas para estudantes da rede pública, que, com isso, passaram a ter mais chances de ingressarem na universidade, evitando, assim, o desperdício de talentos. Ao mesmo tempo, contudo, errava cabalmente ao incluir critérios raciais, além dos sociais, no preenchimento de tais vagas.

A USP, sempre pioneira, erra agora ao instituir cotas para candidatos PPI em concursos públicos para provimento de cargos docentes, onde todos os candidatos (PPI ou não) já são superqualificados, devendo, assim, competir em igualdade de condições. Trata-se não de outra coisa senão de uma discriminação às avessas.

Verdade seja dita, o uso de políticas afirmativas para indivíduos PPI não é privilégio das universidades públicas paulistas. Em 1978 a Suprema Corte norte-americana considerou que critérios de raça poderiam ser considerados no processo de admissão universitária. Contudo, em 29 de junho do ano passado, a mesma Suprema Corte norte-americana voltou atrás, julgando inconstitucional o uso de critérios raciais para a seleção de estudantes de ensino superior em todo o país.

Aqui, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou constitucional o uso de reserva de vagas para membros PPI em 2017. Esperemos que o STF, como guardião da Constituição brasileira, não precise de 45 anos para voltar atrás, fazendo valer o artigo 5.º, segundo o qual “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.

A História ensina que não há lei racial boa, pois, por melhor que sejam suas intenções iniciais, ela incute na cabeça das pessoas a ideia de que a cor da pele, o tamanho do nariz ou a forma dos olhos têm alguma importância, e há inúmeros exemplos trágicos de como isso pode ser distorcido para o mal dependendo das circunstâncias.

Reconhecer que o País está envenenado pelo mal do racismo é um mérito. Estudar formas de combatê-lo é um mérito ainda maior. Mas usar como remédio o próprio veneno só vai envenená-lo ainda mais.

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PROFESSOR TITULAR DO INSTITUTO DE FÍSICA TEÓRICA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA, É MEMBRO TITULAR DA ACADEMIA DE CIÊNCIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO. PROFESSORES.IFT.UNESP.BR/george.matsas