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Opinião|Recolocar a sustentabilidade na saúde suplementar

Isso passa pelo combate a fraudes, pela conscientização da população e por solucionar conflitos sem envolver tribunais

Por Claudio L. Lottenberg

Manuais de ciências econômicas e bons dicionários, além de personalidades ilustres, definem economia como o estudo da alocação de recursos escassos. Não é a única definição nem a melhor, mas apela para algo que, embora pareça trivial, precisa ser enunciado: o uso racional de recursos. Mesmo em casos em que não se esteja em cenário de escassez estrita, usar racionalmente um recurso é justamente o que pode manter tal cenário afastado pelo maior intervalo possível de tempo.

Essa ponderação encontra alguma aderência ao estado em que o setor de saúde suplementar se encontra hoje no Brasil. Que se trata de um recurso – no caso, um serviço – pelo qual há forte demanda, há dados que corroboram. Um plano de saúde é o terceiro maior desejo dos brasileiros (atrás apenas da casa própria e de educação). Levantamento recente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) mostrou que eram 51 milhões os brasileiros que em janeiro deste ano contavam com plano de saúde. Pesquisa de associação do setor mostrou que mais de 90% dos que não têm pagariam pelo benefício, se pudessem. Que existe forte demanda está claro.

Outros dados recentes apresentados pela ANS, no entanto, mostram um quadro com sinais conflitantes – com resultados líquidos e operacionais apontando em direções opostas: nos primeiros, para o setor como um todo, houve lucro de R$ 2,98 bilhões acumulado em 2023. Já nos últimos, viu-se prejuízo de R$ 4,53 bilhões.

Outros dados – não financeiros, mas que impactam diretamente as finanças – ajudam a turvar mais ainda a cena. A sinistralidade (que a ANS define como a relação entre os custos com que arcam as operadoras de planos de saúde e as mensalidades pagas pelos beneficiários), desde 2021, encontra-se acima de 80%, nunca retrocedendo a menos do que isso. No terceiro trimestre de 2022, por exemplo, atingiu o pico de 88,6%. Indicadores de reclamações subiram – o Instituto de Defesa de Consumidores (Idec) informou em março que queixas contra planos de saúde lideraram o ranking de 2023 (29,3%). Da ANS, mais uma vez, veio que de janeiro a outubro do ano passado foram 55,1 reclamações por grupo de 100 mil beneficiários – enquanto em 2020 eram 24,1; em 2021 eram 30,2; e em 2022 eram 36,8.

Há, ainda, a inflação médica: a consultoria em benefícios Aon estima que neste ano a inflação médica (que afere os preços referentes a itens relacionados à prestação de serviços de saúde) ficará em 14,1% no Brasil, ante uma previsão de 4,8% na inflação geral (que no País é medida pelo IPCA). Tudo isso indica que há um imenso esforço de gestão a ser feito, para tirar as companhias de uma situação a que ninguém, no mundo pré-2019, imaginou que se pudesse chegar.

E há a ameaça (o termo é justificado) das fraudes nos planos de saúde. Em fevereiro, um levantamento mostrou que foram abertas, nos últimos cinco anos, mais de 4 mil notícias-crime e ações cíveis contra fraudadores (no ano passado houve um crescimento de mais de 60% ante 2022). O número de fraudes, em 2022, gerou déficits de cerca de R$ 34 bilhões às empresas de saúde, segundo estudo do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (Iess).

Na situação do setor de saúde pública também não se vê nada muito simples de interpretar. Em meio a todas as carências no serviço público de saúde, levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU) mostrou que, em 2022, a União aplicou R$ 155 bilhões na área – o que ficou dentro do mínimo estabelecido pela Constituição (R$ 140 bilhões) para ações e serviços públicos de saúde, mas foi menos que nos dois anos anteriores. Ficou pouco acima do resultado de 2019 (R$ 153 bilhões), mas não se veem as necessidades da população diminuindo – seria até o contrário, em vista dos estragos causados pela covid-19. Sem esquecer que 75% da população está nos Sistema Único de Saúde (SUS), ante 25% que conta com a saúde suplementar.

Por toda parte, o que se vê é que a saúde, no que se refere a gestão, uso e controle de fraudes, precisa de um momento para séria ponderação, por assim dizer. A população envelhece, a inflação do setor corrói os resultados das companhias, os graus de fraudes e judicialização são assustadoramente altos e regulamentações estabelecem novas obrigatoriedades de cobertura (não raro, com custos bastante altos), tudo isso indo desaguar em reajustes de mensalidades.

O modelo precisa ser reequilibrado. Reclamações, ações na Justiça, fraudes, talvez nunca tenha havido um momento sem que qualquer delas existisse, seja onde for que exista um setor de saúde suplementar. Mas o estado atual de coisas na saúde claramente pede algum tipo de concertação. Conscientização sobre o uso, combate rigoroso a fraudes e solução de conflitos que possam evitar que se chegue à via judicial seriam três ótimas grandes linhas mestras para tomar como ponto de partida. Em jogo está um setor cuja importância está além de qualquer disputa.

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MÉDICO, PRESIDENTE DO CONSELHO DELIBERATIVO DA SOCIEDADE BENEFICENTE ISRAELITA BRASILEIRA ALBERT EINSTEIN, É PRESIDENTE DO INSTITUTO COALIZÃO SAÚDE (ICOS)

Opinião por Claudio L. Lottenberg

Médico, presidente do Conselho Deliberativo da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, é presidente do Instituto Coalizão Saúde (Icos)