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Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Não é normal por ter sido sempre assim

A chantagem só será desfeita ao se colocar nos trilhos as relações entre Legislativo e Executivo, fundadas na cooperação na execução de plano de governo, e não na compra disfarçada de votos

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O governo Lula conseguiu, na mesma semana, aprovar na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) modificativa de parte do sistema tributário e, também, que a determinação de empate no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) fosse favorável à União, e não ao contribuinte, redundando em aumento considerável da arrecadação.

O apoio da Câmara dos Deputados decorreu da liberação de mais de R$ 5 bilhões para pagamento das emendas parlamentares, que estavam represadas, enviando aos municípios numerário para obras e serviços definidos genericamente, indicando-se apenas destinar-se ao atendimento da saúde, ou da educação, ou de obra viária. Os deputados, dessa maneira, demonstram prestígio e angariam créditos em seus redutos eleitorais, valendo a troca do voto pelo empreendimento conquistado na busca de reeleição.

A adesão dos parlamentares a projetos de emenda constitucional e de lei não se deu, portanto, para parcela considerável, por espírito público. Pesaram na decisão a liberação da verba de emenda parlamentar propiciadora da reeleição em 2026 e a promessa da nomeação de apaniguados dos partidos para cargos distribuidores de benefícios. É exemplo o compromisso de concessão da direção da Caixa Econômica Federal, que libera financiamentos do programa Minha Casa Minha Vida, e da Funasa, responsável pela execução do saneamento básico em pequenas cidades. A direção de ambas permite angariar votos.

Novamente, trata-se o público como se privado fosse. Gilberto Freyre apontou como elemento definidor da unidade nacional a estrutura patriarcal de nossa sociedade, que permitiu reunir o diverso e o contraditório sob um mesmo teto, graças a um denominador comum, um traço uniforme no comportamento do estamento governamental ao longo do tempo: a falta de distinção entre o público e o privado.

Esta supremacia dos interesses particulares sobre o interesse geral foi, para Gilberto Freyre, ostensiva na formação brasileira. Os poucos que dirigem o País não o fazem em favor da maioria. No Estado patrimonialista, que ainda remanesce, “a minoria exerce o governo em nome próprio” e o exercita não em prol da Nação, mas segundo sua conveniência. Assim, discórdias são superadas por meio de verbas, de loteamento de cargos e honrarias.

Ausente a dimensão do bem comum, o desfazimento de eventuais conflitos pode ser facilmente alcançado pela conciliação dos interesses, mediante a satisfação do maior número de correligionários, em acordo tácito entre os “donos do poder”, o que pereniza a desigualdade e a exclusão social.

Para Sérgio Buarque de Holanda, a “cordialidade” é característica essencial da brasilidade – para muitos, no sentido de composição entre setores divergentes da elite, que jamais levam a ferro e fogo as disputas, de forma a não comprometer o sistema de poder. Esta semana, reabriu-se o Congresso Nacional e a dança dos interesses voltou à baila.

Dois alicerces do sistema político não ajudam a governabilidade: 1) o sistema eleitoral proporcional, facilitador da guerra entre membros do mesmo partido, disputando cada um por si; 2) o sistema presidencialista, desenhado na Constituição, que criou o Executivo forte, graças à adoção de medidas provisórias, garantidoras do processo legislativo sem o Congresso, mas instaurou um presidente fraco, sujeito a todas as chantagens, por falta de fidelidade dos parlamentares a um programa de governo. O apoio é conquistado no varejo pelo atendimento a reivindicações individuais.

Assim, o Congresso é desmedidamente forte por não ter qualquer responsabilidade e nem ser sancionado com dissolução. Arthur Lira atua como um primeiro-ministro sem risco de moção de censura.

Há que reconhecer ser esta estrutura política uma facilitadora da corrupção de toda espécie, de que são exemplos recentes o mensalão e o petrolão, cuja realidade a farsa da narrativa negacionista não desfaz.

O malefício que contamina nossa política não está apenas no clientelismo, mas no corporativismo, a ver que a Câmara dos Deputados não se divide em partidos, mas em bancadas, reunidos os deputados de acordo com sua prioridade ideológica, ou seja, a bancada da bala, a da Bíblia, a do boi.

Enquanto não houver reforma política, será assim. Fundamental, portanto, instalar-se o sistema eleitoral distrital misto, que fortalece e dá conteúdo aos partidos políticos, permitindo às circunscrições representação no Parlamento, para se criar “o gosto pelo bem comum”.

Por fim, é de todo conveniente o sistema semipresidencialista, com instituição de governo em responsabilidade conjunta do Executivo e da Câmara dos Deputados, podendo esta, em crise de governabilidade, vir a ser dissolvida. A chantagem só será desfeita ao se colocar nos trilhos as relações entre Legislativo e Executivo, fundadas na cooperação na execução de plano de governo, e não na compra disfarçada de votos.

Do contrário, só resta recorrer à cegueira deliberada, fazendo de conta que é normal a extorsão dos parlamentares sobre o Executivo, por ter sido sempre assim.

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por Miguel Reale Júnior

Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

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