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Advogado e Jornalista

Opinião|O STF não é o problema, tampouco a solução

Na hipervalorização do Supremo, tem-se uma compreensão superficial da própria relação entre Direito e sociedade

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Há uma crescente indignação com o Supremo Tribunal Federal (STF), seja por suas decisões, seja pelo comportamento de alguns de seus integrantes. O Supremo tornou-se tema cotidiano na imprensa, no debate público, nas conversas. Parece ser ele o grande problema a ser resolvido no País.

Não há dúvida de que o STF – em seu funcionamento, em sua composição, em sua compreensão do Direito – expressa muitas de nossas deficiências enquanto sociedade. A Corte constitucional não está imune à realidade brasileira: ao seu contexto social, cultural, político e econômico. O Supremo é, portanto, muitas vezes parte do problema. Há nele muito a ser corrigido e aperfeiçoado.

Mas isso não faz do STF a causa dos nossos problemas, como se a grande questão nacional fosse mudar o Supremo. Tornemos o STF perfeito – tal como cada um imagina que deveria ser a Corte constitucional – e os problemas brasileiros continuarão muito similares.

Eis um dos grandes desafios de compreensão da atualidade. A Corte constitucional desempenha uma função fundamental no Estado Democrático de Direito. Mas isso não a transforma no órgão estatal mais importante do País, nem a torna onipotente.

O STF tem a missão de defender a Constituição, mas ele é incapaz de sozinho prover efetividade ao texto. Os exemplos são inúmeros. Em 2015, a Corte reconheceu o estado de coisas inconstitucional dos presídios nacionais. No entanto, o que mudou desde então? Correta e necessária, a decisão era e continua sendo insuficiente para modificar a realidade.

Isso não é demérito do Supremo. Trata-se de consequência do que é uma Corte constitucional dentro do Estado Democrático de Direito. É impossível que o STF seja hoje o grande problema nacional por uma razão simples. Por mais importante que seja, o Supremo não dispõe do poder que lhe atribuem alguns de seus admiradores e muitos de seus críticos. Por mais que erre – e, às vezes, ele erra feio –, o STF nunca será o grande problema a ser resolvido no País.

Colocar o Supremo numa espécie de pedestal, a merecer todas as atenções da sociedade, é ignorar a existência de três Poderes independentes. Mesmo que, por hipótese, os ministros do STF ampliem suas competências, a Corte nunca será a protagonista de todas as esferas da vida pública. Ela é incapaz de assentar um poste de iluminação pública, de selecionar e contratar um professor, de dar treinamento a um policial. Uma Corte constitucional pode facilitar ou atrapalhar o trabalho do Executivo, mas é absolutamente incapaz de substituí-lo.

Essa compreensão distorcida de Estado, subjacente na visão do STF como o grande problema nacional, tem efeitos muito concretos sobre o exercício da cidadania. Ao fixar exclusivamente o olhar sobre o Supremo, perde-se o alcance da responsabilidade, por exemplo, dos prefeitos e vereadores no cuidado da coisa pública. Eles ficam, em boa medida, isentos do indispensável controle social. A hipervigilância do Judiciário, como se ali se decidisse tudo, conduz a população a um alheamento da política.

Há dois anos tivemos uma eleição para o Senado bastante disfuncional, em que candidatos foram eleitos com base apenas em sua oposição ao STF, sendo que a atuação de um senador vai muito além de suas opiniões sobre o Supremo. A indignação com a Corte constitucional foi instrumento de evidente manipulação política.

Na hipervalorização do STF, há mais do que uma ideia distorcida de Estado. Tem-se uma compreensão superficial da própria relação entre Direito e sociedade. Atribuir ao Supremo o status de maior problema nacional é conferir à sua atividade uma distópica capacidade de transformação social. A sociedade é complexa, com regras e dinâmicas profundas. O direito positivo é muito limitado frente a tudo isso.

Ao fazer do Estado – no caso, do STF – o bode expiatório de nossas angústias, atribui-se ao ente estatal um poder que ele jamais teve. Por mais que o Supremo trabalhe – por mais, como afirmam alguns, que ele seja extremamente ativista –, ele é incapaz de moldar a realidade social, cultural, política e econômica do País. O fruto de sua atividade são decisões judiciais, cuja efetividade é bastante limitada.

Um alerta. Afirmar que o STF não é o problema é reconhecer, a um só tempo, que ele também não é a solução das questões nacionais. Os problemas vitais de um país não são resolvidos por sua Corte constitucional: ela não educa as crianças, ela não dá comida aos que têm fome, ela não cria empregos, ela não define o que é crime. Certamente, aplicar corretamente a Constituição pode facilitar tudo isso, mas não é o Judiciário, para o bem ou para o mal, que realiza essas atividades.

Sejamos mais modestos nos louvores e nas críticas ao STF. Os 11 ministros têm muito poder – e é necessário exigir-lhes decisões compreensíveis e fundamentadas. Mas os rumos da sociedade não estão em suas mãos. Tampouco os rumos do Estado. Criar um bode expiatório é cômodo, mas envolve um autoengano. O bem do País fica a depender dos outros, e não do exercício responsável da própria cidadania.

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ADVOGADO

Opinião por Nicolau da Rocha Cavalcanti

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