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O incrível caso do sem-teto ‘golpista’

Morador de rua preso por quase um ano, acusado de participar do 8 de Janeiro, deve ser absolvido por falta de provas, num caso exemplar dos abusos em nome da defesa da democracia

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Por Notas & Informações
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O caso de um morador de rua que passou quase um ano preso por suposta participação no ataque bolsonarista às sedes dos Três Poderes no infame 8 de Janeiro, e que provavelmente será absolvido por falta de provas, é exemplar dos exageros que estão sendo cometidos em nome da defesa da democracia por parte do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Procuradoria-Geral da República (PGR).

O serralheiro Geraldo Filipe da Silva vivia em situação de rua em Brasília havia três meses quando foi observar a razia promovida pela malta bolsonarista. A “curiosidade” que o movera, conforme depoimento prestado às autoridades, lhe custou caro: quase um ano de prisão sem que tenha cometido crime algum. É possível imaginar a angústia e o sentimento de impotência do sem-teto, que, sabidamente inocente, viu o poderoso aparato persecutório do Estado se voltar contra ele.

Geraldo foi preso em flagrante e acusado pela PGR dos crimes de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio público tombado. Denunciado ao STF por todos esses gravíssimos delitos, o homem que não derrubou sequer um vaso de plantas no chão naquele dia infame se tornou réu em 31 de maio de 2023. Só deixaria a cadeia em novembro – e, mesmo assim, para continuar respondendo às acusações em liberdade.

Só no dia 8 passado o ministro Alexandre de Moraes votou pela absolvição do serralheiro. Segundo Moraes, não foram apresentadas provas suficientes de que Geraldo tenha participado da insurreição “aderindo dolosamente ao intento de tomada do poder e destruição do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo”. Ou seja, a mesma PGR que acusou Geraldo de crimes gravíssimos foi incapaz de provar sua culpa e pugnou por sua absolvição – mas o dano já havia sido causado.

O desleixo do parquet – e também do STF, que aceitou uma denúncia inepta – autoriza a inferência de que Geraldo foi tratado como só mais um em meio às denúncias de baciada que a PGR ofereceu contra os acusados de praticar os atos golpistas. Em nome de uma suposta cruzada em defesa da democracia, abusos têm sido cometidos pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário. Até uma altercação envolvendo o ministro Alexandre de Moraes no aeroporto de Roma já foi tratada como um “ataque” contra o Estado Democrático de Direito. Liberdades foram cassadas sem o devido processo legal. Punições “preventivas” têm sido determinadas pelo STF, como é o caso dessa estapafúrdia decisão de Moraes que proíbe Jair Bolsonaro de participar de eventos em quartéis.

Ninguém de boa-fé haverá de ignorar a importância que o STF teve para frear a sanha golpista que moveu o governo Bolsonaro do primeiro ao último dia de seu mandato, e mesmo depois. Na ausência de um procurador-geral à altura do cargo e de suas funções na República e com parte do Congresso comprada a peso de “orçamento secreto”, não foram poucas as ocasiões, entre 2019 e 2022, em que a sociedade só pôde contar com o STF como última linha de defesa da democracia e da Constituição. Também é inolvidável que o julgamento dos atos golpistas do 8 de Janeiro impôs à Corte desafios sem precedentes na história recente. No entanto, nenhum desses desafios, por mais complexos que sejam, suspendeu os direitos e as garantias fundamentais que a Constituição confere a qualquer cidadão.

O voto de Moraes deve ser seguido por seus pares, haja vista que as posições do ministro relator têm ditado, para o bem ou para o mal, os rumos do STF no que concerne aos inquéritos abertos para supostamente apurar ataques contra a democracia – e que até hoje não foram encerrados. Sendo assim, Geraldo provavelmente será o primeiro réu absolvido de todas as acusações que lhe foram imputadas pela PGR por sua suposta participação nos atos do 8 de Janeiro.

Ao fim e ao cabo, é reconfortante saber que um homem inocente deverá ser reconhecido como tal pela mais alta instância do Poder Judiciário do País. Mas, diante da violência estatal cometida contra Geraldo Filipe da Silva, entre outros abusos, é o caso de perguntar: afinal, quantos “Geraldos” ainda há atrás das grades na segunda maior democracia das Américas?