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Opinião|A era da distração

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convidado
Por José Renato Nalini

Estes tempos que nos são dados viver já foram chamados de forma diversa. Já se falou em “tempos de cólera”, “dies irae”, “era do efêmero” ou “sociedade líquida”, onde tudo o que é sólido desfaz-se no ar.

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A digitalização da vida, o controle de nossos atos e preferências pelos algoritmos, a invasão dos meandros de nossa consciência pela inteligência artificial são fatos inequívocos. E vieram para ficar.

Será que as crianças de hoje ainda têm condições de se concentrar? A leitura do livro “O cérebro no mundo digital”, de Maryanne Wolf, angustia e assusta. O desenvolvimento da cognição é essencial e aprender a se concentrar é um desafio permanente. Algo quase impossível numa cultura em que a distração é onipresente.

A atenção, diz a autora, está ao alcance de quem a capturar primeiro. “E o mundo digital captura a atenção. Num relatório Rand de 2015, a média de tempo gasto por crianças de 3 a 5 anos em aparelhos digitais era de 4 horas por dia; 75% das crianças de 0 a 8 anos tinham acesso a aparelhos digitais, sendo que o índice, de dois anos antes, era de 52%. Nos adultos, o uso de recursos digitais subiu 117% em um ano”.

Tudo é mais grave em relação às crianças. Já se disse que a criança tem “mente de gafanhoto”, para exteriorizar a maneira saltitante pela qual o infante digitalizado pula de um ponto para outro. Distrai-se e esquece da tarefa inicial. É a “inclinação pelo novo”, que faz com que a atenção seja direcionada para tudo aquilo que surge. Crianças com apenas 3 ou 4 anos, às vezes até mesmo de 2 ou menos, recebem passivamente e, depois, passam a exigir ativamente e com regularidade os níveis de estimulação de crianças maiores. São projetados num estado de hiperatenção contínua. De acordo com o cientista Daniel Levitin, “a multitarefa cria um círculo de feedback de dependência de dopamina, que recompensa eficazmente o cérebro por perder o foco e por buscar estimulação externa constantemente”.

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O estado de excitação produz vários fenômenos novos na infância de hoje. As crianças não querem ficar offline. Dizem-se entediados. Há possibilidades deslumbrantes oferecidas na tela. Os pequenos ficam reféns da contínua estimulação sensorial. Para Maryanne Wolf, há vários tipos de tédio. Há o tédio natural, parte da infância que proporciona às crianças a iniciativa de criarem suas próprias formas de entretenimento. Mas há o tédio não natural, culturalmente induzido, próprio à estimulação digital. É a forma que desanima a criança de maneira a impedi-la de querer explorar e criar por iniciativa própria experiências do mundo real. Particularmente fora de seus quartos.

É dramático pensar que, a pretexto de oferecer à criança tudo aquilo que é possível, mediante entrega das muitas ofertas criativas dos aparelhos eletrônicos e demais inovações tecnológicas, estejamos a privá-las “da motivação e do tempo necessário para construir suas próprias imagens do que deveriam ler e a montar seus próprios mundos imaginários offline, que são os habitats invisíveis da infância”.

Muito triste observar que crianças e adolescentes sejam estimulados e entretidos tão constantemente por meios virtuais, que raramente querem sair da tela para descobrir sua própria capacidade de se entreterem com esconderijos criados por elas mesmas. Preferivelmente fora de casa, junto à natureza. Crianças que não gostam de estar ao ar livre e que abominam a vida rural, detestando chácaras, sítios e fazendas. Quando se deslocam para esses espaços, com má-vontade e entediadas, permanecem nas redes sociais com seus celulares. Não dão chance à ecologia.

Os adolescentes multiplicam as horas em frente às telas. Chegam a superar as 12 horas por dia, diante da variedade de seduções geradoras de dependência. Isso é doença, não é uma hipérbole: é realidade clínica. Como observa Steiner-Adair, “como adultos, nos é dada a escolha de bagunçar nossas mentes e por em risco nossa neurologia, mas um pai ou uma mãe zelosos não arriscariam dessa forma, conscientemente, o futuro de seu filho. Ainda assim, estamos entregando esses recursos – que descrevemos como viciosos – a nossos filhos, que são ainda mais vulneráveis ao impacto do uso diário sobre seus cérebros em desenvolvimento. Em nosso afã de sermos atualizados e oferecer aos filhos todas as vantagens, estaríamos pondo-os em perigo”.

Estamos criando uma geração com déficit de atenção ambientalmente induzido pelo controle incessante e obsessivo das distrações digitais sobre a criança. O número crescente de crianças diagnosticadas com déficit de atenção reflete os melhores diagnósticos precoces, que também comprovam diferenças fisiológicas entre crianças submetidas a desempenho multitarefa, que cresceram no contexto da mídia digital, comparadas às crianças dela não dependentes. É de se pensar a respeito e a agir antes que seja tarde.

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José Renato Nalini
Reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo. Foto: Alex Silva/Estadão
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