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A injustiça do caso Deltan

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Por Júlio Marcelo de Oliveira
Atualização:
Júlio Marcelo de Oliveira. Foto: MPD/Divulgação

Há cerca de duas semanas, o país foi surpreendido com a decisão do Tribunal Superior Eleitoral de cassar o mandato do Deputado Federal Deltan Dallagnol por considerá-lo inelegível em razão de haver pedido exoneração do Ministério Público Federal quando havia reclamações abertas contra ele no Conselho Nacional do Ministério Público pendentes de deliberação.

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Essa decisão foi um tremendo golpe contra a nossa democracia, não só porque cassou os 344 mil votos que lhe conferiram o título de deputado federal mais votado do Paraná, mas também porque feriu o texto da Lei da Ficha Limpa, violou a Constituição, contrariou toda a lógica de nosso ordenamento jurídico, desrespeitou a própria jurisprudência do TSE e do Supremo Tribunal Federal e deixou no ar uma amarga sensação de casuísmo e injustiça, que contribui para o descrédito de nossas instituições.

Analisando a decisão na rádio CBN, o jurista Walter Fanganiello Maierovicth, crítico da Lava Jato, chegou a pontuar uma percepção sua de que essa decisão tinha um colorido vingativo, asseverando "tribunal é para fazer justiça e não vingança". Tudo nesse julgamento discrepou do normal, do conteúdo à forma como ele se deu.

Também o ministro aposentado do STF Marco Aurélio Mello se confessou perplexo com a decisão tomada pelo TSE e foi enfático ao afirmar ser essa "uma interpretação à margem da ordem jurídica".

Muitos daqueles que não gostam da Lava Jato ou, mais especificamente, do Deputado Federal Deltan Dallagnol celebraram a decisão como quem saboreia uma doce vingança. Cegos pelo rancor, estão subestimando os riscos para a democracia decorrentes do super-empoderamento e voluntarismo do Poder Judiciário. Os cidadãos precisam estar seguros e protegidos dos desmandos do Estado todo poderoso. O Poder Judiciário deve ser o refúgio do cidadão, não o seu cadafalso.

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Um comentarista de uma emissora de TV chegou a proferir a boutade de que Deltan não poderia reclamar da decisão porque ele foi a favor da Lei da Ficha Limpa, além do mais, estaria provando de seu próprio veneno, tendo em vista supostos erros cometidos na Lava Jato. Primeiro, a Lei da Ficha Limpa, tal como editada, não foi aplicada, mas uma inédita, inusitada e inconstitucional interpretação da lei, que, só assim, poderia alcançar Deltan. Se Dallagnol cometeu ou não algum erro na Lava Jato é absolutamente irrelevante para o julgamento do TSE. Ali estava em questão tão somente sua capacidade eleitoral passiva, se ele podia ou não ser eleito. Nada mais. A mistura de alhos com bugalhos é muito útil apenas para aqueles que, à míngua de bons argumentos, querem desviar o foco da discussão sobre a juridicidade da decisão do TSE.

Examinemos a questão com mais detalhe. A Lei da Ficha Limpa estabelece que são inelegíveis "os magistrados e os membros do Ministério Público que (...) tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar". A lei é muito clara, apenas a existência de processos administrativos disciplinares (PAD) pendentes de julgamento produz o efeito da inelegibilidade no membro do Ministério Público que se exonera. Esse é o critério legal. Contra Deltan não havia nenhum PAD aberto, somente reclamações, que são procedimentos preliminares, ainda carecedores de investigações para apuração de eventuais materialidade e autoria de condutas em tese ilícitas.

O relator do caso no TSE ampliou o critério legal para considerar que outros procedimentos no CNMP, como as reclamações, também teriam o condão de produzir a inelegibilidade. No caso concreto, ele presumiu que Deltan Dallagnol agiu com fraude à lei, quando a lei muito claramente estabeleceu qual é o critério legal de fraude a ser combatida, a exoneração na pendência de processos administrativos disciplinares. Foi além, em um hercúleo esforço de futurologia, presumiu que os procedimentos preliminares ainda incipientes evoluiriam para processos administrativos disciplinares, negando a possibilidade de que tais procedimentos fossem simplesmente arquivados, como acontece com grande parte, senão a maioria, desses procedimentos.

O relator ainda considerou como indício de fraude o fato de Deltan ter-se exonerado alguns meses antes do prazo fatal de desincompatibilização estabelecido pela lei. Ora, o que a lei não admite é que a exoneração ocorra depois de vencido o prazo. Antes de vencido o prazo, a exoneração pode-se dar a qualquer tempo, desde que não haja processos administrativos disciplinares, até porque é direito potestativo do servidor pedir exoneração do cargo e se assim é, o exercício regular desse direito nem de longe pode ser tomado como indício de burla à lei. Ao contrário, foi o justo cumprimento da lei.

Reside aí não só a frontal violação ao texto da lei, mas a própria inconstitucionalidade dessa interpretação. Toda a fundamentação do Constitucionalismo se dá a partir da ideia de limitação dos poderes do Estado e proteção das liberdades e direitos do cidadão. Disso decorre a existência de princípios de proteção dos direitos e instrumentos de sua garantia, como o devido processo legal, a presunção de inocência, o princípio do in dubio pro reo, que no Direito Eleitoral assume a feição de in dubio pro suffragium. Daí porque, no campo abstrato normativo, sempre que houver um choque entre uma pretensão estatal de restrição de direito e o desejo manifesto de um cidadão exercê-lo, deve prevalecer sempre a interpretação que limita a restrição e amplia a proteção do direito. No campo fático, sempre que uma situação se apresentar duvidosa ou controversa quanto à sua submissão a uma norma restritiva de direito, deve prevalecer a liberdade de o cidadão exercer seu direito. Isso é um dos pilares do Direito, como já proclamava o antigo brocardo latino odiosa restrigenda, favorabilia amplianda. Essa é aliás a consagrada jurisprudência do próprio TSE em matéria de inelegibilidades.

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Em caso de todo semelhante, envolvendo o atual Senador Sérgio Moro, julgado em 15 de dezembro de 2022, apenas cinco meses antes, o TSE consagrou mais uma vez a elegibilidade. Em ação movida por partidos políticos, alegou-se que o ex-juiz pedira exoneração da magistratura na pendência de procedimentos contra si no Conselho Nacional de Justiça e, por essa razão, seria inelegível. O relator do caso assinalou que "Os preditos expedientes correram sob a forma de Pedido de Providências e de Reclamação Disciplinar. É forçosa, portanto, a conclusão pela ausência de instauração de Processo Administrativo Disciplinar, elementar reclamada pela legislação eleitoral para a configuração do impedimento temporário. Isso porque não é qualquer espécie de procedimento disciplinar que leva à aplicação de penalidades ao magistrado." E concluiu, realçando a pacífica jurisprudência do TSE: "É iterativa a jurisprudência deste Tribunal Superior no sentido de que normas delineadas na Lei de Inelegibilidade (LC nº 64/1990), por serem de ordem restritiva, também devem ser interpretadas restritivamente, sob pena de se incorrer em indevida analogia, desnaturando o comando legal." Nada justifica que apenas cinco meses depois, interpretação diametralmente oposta seja adotada. Curiosamente, o relator do caso envolvendo Deltan Dallagnol acompanhou o voto do relator do caso atinente a Sérgio Moro.

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Ainda que a nova interpretação, mais restritiva, pudesse ser tida como constitucional e razoável, há outro obstáculo intransponível para sua aplicação ao caso do Deputado Federal Deltan Dallagnol. Nova interpretação em matéria de eleitoral somente pode ser aplicada a eleições que ocorram a partir de pelo menos um ano de sua adoção, isto é, essa inusitada interpretação dada pelo relator e sufragada pelo colegiado do TSE somente poderia ser aplicada a situações concretas relativas a eleições que ocorram a partir de maio de 2024.

Além do conteúdo inconstitucional da inovação adotada e de sua indevida aplicação retroativa a este caso referente às eleições de 2022, chamou a atenção também a forma como o julgamento ocorreu. Em pouco mais de um minuto, o processo foi apregoado, relatado e votado pelo Plenário do TSE. Como é possível que uma tese inovadora, contrária a tudo o que sempre se fez e se defendeu no TSE, seja sufragada assim, sem nenhuma discussão, sem sequer sua exposição oral pelo relator na sessão? Repita-se, apenas cinco meses antes, o TSE decidira exatamente o oposto. Essa forma apressada de julgar algo tão inovador quanto gravoso passa a impressão de que houve uma discussão interna prévia, longe do público e, portanto, fora do momento e do lugar onde se deveria dar tal discussão, que é na sessão plenária do TSE. Para isso serve a sessão que a Constituição exige que seja pública.

Como se trata de matéria eminentemente constitucional, há ainda a possibilidade de revisão do caso pelo STF em sede de Recurso Extraordinário. Resta saber quais valores serão protegidos e consagrados pela Corte que tem o dever jurídico, ético e moral de defender os cidadãos brasileiros dos abusos do poder estatal em todas as suas formas, incluída eventualmente a forma judicial.

*Júlio Marcelo de Oliveira, procurador de Contas junto ao TCU e membro da Diretoria do Movimento do Ministério Público Democrático

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Este texto reflete a opinião do(a) autor(a)

Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica

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