Foto do(a) blog

Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Opinião|Arquitetura fora do lugar

PUBLICIDADE

convidado

Quando vemos anúncios de vendas de edifícios novos em São Paulo – que alias não param de surgir... – a palavra arquitetura vem em geral como um adjetivo: contemporânea, minimalista, sustentável, ou um atributo: arquitetura diferenciada, segurança 24hrs, lazer completo, piscina no rooftop e outras exclusividades.

PUBLICIDADE

Acho intrigante constatar como o mercado imobiliário percebe o que seja arquitetura e como ela sendo um atributo exclusivo, serve a uma estratégia de venda. Neste boom mobiliário que estamos vivendo na cidade, com a superprodução de edifícios novos, vejo que se pudermos ampliar e compreender com maior precisão o que é o fazer arquitetônico, observando sua função técnica, social e cultural, pode ser um beneficio para que como cidadãos possamos reivindicar por uma boa arquitetura, capaz de produzir não só bons prédios, mas boa cidade: justa e saudável.

Nós profissionais arquitetas (os) e urbanistas (os) somos formadas (os) para pensar o espaço do habitar nas suas várias escalas, seja um pequeno quarto, a casa, a rua, a cidade e até a escala do território, onde analisamos sobretudo as relações entre cidade e natureza. Transitamos por estas escalas com certa facilidade, ou seja, para nós o espaço é uma coisa só, é nossa matéria prima.

Para saber como transformar o espaço nós começamos por entender, observar e escutar o lugar: através do conhecimento das pessoas, sua memória, urbanidade, geografia, e as condicionantes financeiras das usuários e do empreendedor. Este processo, que é coletivo, no meu entender, é também horizontal, no sentido que todos os dados da equação tem peso equivalente na busca de uma solução arquitetônica. Esta solução se expressa em uma ação projetual de síntese que vai definir como transformar o espaço. A síntese é “traduzida”, num elemento que é nosso principal instrumento expressão: o projeto arquitetônico. O projeto arquitetônico contém todos os saberes recolhidos e acordados no momento anterior, ou seja, ele é uma instância inclusiva de mediação, dinâmico, como um móbile de várias pás que encontra em dado momento seu ponto de equilíbrio.

Vendo por este aspecto podemos entender que arquitetura não é nem adjetivo nem atributo, e sim um meio, aliás muito potente de transformação da nossa realidade em busca de um viver equilibrado, acessível e responsável ambientalmente. Sua qualidade, portanto, não está na ideia de “embelezamento” a posteriori, mas no modo como foi concebido e projetado.

Publicidade

Porém hoje as coisas não se dão assim. A ideia de que arquitetura é algo que se “aplica” na construção em busca de um certo “refinamento”, é muito difundida em nosso país; para muitos arquitetura é coisa de luxo e somente os ricos tem acesso... E este para mim é um problema que coloca arquitetura fora do seu lugar. Primeiro porque induz à suposição que arquitetura é algo caro - o que não tem sentido porque quando se projeta, se prevê aquilo que vai ser feito evitando o improviso em obra, por exemplo. E quando se atribui um juízo de valor de beleza e refinamento a um certo tipo de construção, estamos querendo dizer que todo o resto pode ser feio e tosco? Melhor não.

Dentro da temática que mais aflige nosso país, a desigualdade, em todos os seus aspectos, vejo que o pensamento arquitetônico tem muito a contribuir. Quando analisamos os resultados do Censo do IBGE deste ano: 49 milhões de pessoas não tem acesso ao esgoto, 6 milhões de déficit de moradia…estes são temas também da arquitetura, porque tanto o encanamento do esgoto quanto as casas precisam de um espaço para se instalar na cidade, não pode ser de qualquer jeito. Com este cenário de desastre pensar em boa arquitetura torna se necessário e oportuno; projetando as ruas para receber a tubulação de esgoto, podemos projetar calçadas mais largas e acessíveis, sombreadas por árvores; fazendo moradias que juntas configurem um espaço urbano de qualidade e seguro, diversificado, conectado com as redes de serviços públicos e transporte, ou seja fazendo casas com um verdadeiro endereço.

A boa arquitetura, como vemos, pode estar em qualquer lugar, sua qualidade vem deste aspecto multidisciplinar de concepção do projeto onde todos os valores estão colocados numa conta justa. O que se tem hoje é que, lamentavelmente, a conta de muitas incorporadoras e fundos imobiliários se fecha somente pelo atributo do fluxo da operação financeira. Ou seja, ambos os segmentos entendem que o que “segura um projeto em pé” são seus aspectos econômicos.

Assim a boa arquitetura é aquela que tem uma relação franca com a rua, sem muros fechados que assustam e oprimem nosso caminhar, que olha para os vizinhos com respeito, que coloca as janelas nas melhores posições, generosa com as áreas verdes, e que ajuda a construir uma paisagem urbana com a nossa escala, humana, gentil e acolhedora.

Para finalizar, a boa arquitetura não tem porque ser mais cara que qualquer outro modo de construir, e muito menos algo que seja restrito a uma pequena parcela da população. O premiado arquiteto Paulo Mendes da Rocha (1928-2021) ironizava o conceito de moradia popular, dizia que não fazia sentido para ele, comparava à água: a água se for popular vem contaminada? e a eletricidade popular dá choque? A boa arquitetura precisa encontrar seu lugar no cotidiano da cidade, melhorando nosso modo de viver e compartilhar espaços; para isso o fazer arquitetônico precisa se tornar uma atividade comum e acessível para as comunidades, os órgãos públicos ou privados, como meio que contribuir - dentro da sua especificidade - para a construção de lugares aprazíveis de se viver.

Publicidade

Convidado deste artigo

Foto do autor Catherine Otondo
Catherine Otondosaiba mais

Catherine Otondo
Arquiteta e urbanista, ex-presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo. Professora doutora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie
Conteúdo

As informações e opiniões formadas neste artigo são de responsabilidade única do autor.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Estadão.

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.