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As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Ministério Público Federal denuncia 5 agentes da ditadura militar pela morte de Carlos Marighella

Quase 55 anos depois, ação acusa 4 policiais comandados pelo delegado Fleury de participar do assassinato do comunista e um legista de omitir informações sobre as circunstâncias da morte

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Foto do author Marcelo Godoy
Atualização:

O Ministério Público Federal (MPF) denunciou nesta terça-feira, 14, quatro policiais e um médico-legista sob a acusação de envolvimento no assassinato do líder comunista Carlos Marighella e na fraude processual para despistar a Justiça. Quase 55 anos depois da emboscada comandada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), e oito anos depois de a investigação do caso ser reaberta, em 2016, a apuração da Procuradoria da República chegou ao fim.

Carlos Marighella, morto no fusca na Alameda Casa Branca. Marighela dirigia a ALN e foi deputado Federal do PCB Foto: Acervo/Estadão

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Foi na noite do dia 4 de novembro de 1969, por volta das 20h15, que policiais do Dops surpreenderam o líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), na Alameda Casa Branca, nos Jardins, na zona sul de São Paulo. Eles usaram dois frades dominicanos capturados e torturados na sede do Dops para atrair Marighella, o inimigo público n.º 1 do regime militar, para uma armadilha.

Marighella defendia que a resistência ao regime militar deveria ser armada, tanto no campo como nas cidades. Seu objetivo era criar colunas guerrilheiras, a exemplo do que fizeram Fidel Castro e Che Guevara em Cuba. Sua obra Minimanual do Guerrilheiro Urbano influenciaria grupos implicados em assassinatos, sequestros e em atentados na Itália, como as Brigadas Vermelhas, e na Alemanha Federal, como o Baader-Meinhoff. O delegado Fleury o qualificava como o “chefe do terrorismo no Brasil”.

Quando chegou ao encontro marcado com os frades, Marighella entrou em um Fusca. Não percebeu que os militares e civis se escondiam no quarteirão da Alameda Casa Branca, aguardando a sua chegada. De acordo com as investigações do MPF, entre os policiais que participaram da emboscada estavam Amador Navarro Parra, Luiz Antônio Mariano, Walter Francisco e Djalma Oliveira da Silva, todos subordinados a Fleury. Os quatro foram denunciados por assassinato. A coluna não conseguiu localizar seus defensores.

Pessoas na Alameda Casa Branca, nos Jardins, observam cena do crime Foto: Acervo/Estadão

“O homicídio de Marighella foi cometido por motivo torpe, consistente na busca pela preservação do poder usurpado em 1964 mediante violência e uso do aparato estatal para reprimir e eliminar opositores do regime e garantir a impunidade de homicídios, torturas, sequestros e ocultação de cadáveres”, escreveu o procurador da República Andrey Borges de Mendonça na denúncia à qual o Estadão teve acesso. Outros 25 participantes da emboscada já faleceram. Ao todo, 43 homens e mulheres foram mobilizados direta e indiretamente na operação.

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Além de acusar os quatro policiais de coautoria no homicídio, o procurador também denunciou o médico-legista Harry Shibata, sob a acusação de ele ter feito uma perícia falsa a fim de garantir a impunidade dos envolvidos. Shibata foi um dos dois legistas que examinaram os corpos das vítimas da emboscada. Ele teria omitido informações sobre a distância dos disparos, entre outras, que permitiriam atestar a execução de Marighella. A coluna não conseguiu localizar Shibata nem seus advogados.

O procurador descreve na denúncia a prisão de um militante da ALN que revelou as relações de Marighella com frades dominicanos de São Paulo Yves do Amaral Lesbaupin, o Frei Ivo, e Fernando de Brito, o Frei Fernando. Outro dominicano que mantinha contatos com integrantes da ALN era Carlos Alberto Christo, o Frei Betto. Os policiais acreditaram que o Convento dos Dominicanos, em Perdizes, na zona oeste, serviria de base para o grupo de Marighella. E interceptaram um telefone que seria usado pelo líder comunista para se comunicar com os frades.

Croqui feito pelo Ministério Público Federal da operação que levou à morte de Marighella Foto: Reprodução / Estadão

Assim, de acordo com a denúncia, os policiais do Dops capturaram os Freis Ivo e Fernando, no Rio, com a ajuda de militares da Marinha. “Os freis foram torturados seguidamente, desde o início da tarde, por volta das 15 horas, até o início da noite (de) 3 (de novembro). Frei Fernando afirmou: ‘Arrancaram-se as roupas, dependuraram-me no pau de arara, ligaram os eletrodos em minhas orelhas e nos órgãos genitais; armaram-se de porretes, rodaram a manivela, fizeram-me estrebuchar sob a virulência das descargas elétricas.’ Após intensas torturas, os freis confessaram que faziam parte da rede de apoio de Marighella”.

A denúncia do MPF afirma ainda que os freis foram trazido para São Paulo e aqui, às 16h30 do dia 4 de novembro, com uma arma apontada para sua cabeça, Frei Fernando recebeu uma ligação telefônica com a seguinte mensagem: “É da parte do Ernesto (Marighella), hoje ele irá à gráfica as 20h30″. Isso significava que Marighella iria ao encontro dos frades, naquela noite, na Alameda Casa Branca.

De acordo com a denúncia, “a partir de então, o delegado Sérgio Fleury (morto em 1979) procedeu ao reconhecimento do local, sendo o plano de ação esquematizado em colaboração com os delegados Rubens Cardoso de Mello Tucunduva e Francisco Guimarães do Nascimento (ambos falecidos). Este último era o responsável pelas comunicações e setor da aparelhagem técnica”.

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Carro do delegado Romeu Tuma, então chefe do Serviço Secreto do Dops; veículo levava a investigadora Estela Morato que se dirigia ao local da morte de Marighella, tendo sido morta por engano após não respeitar bloqueio do Dops Foto: Acervo/Estadão

De acordo com as investigações, foi montado um esquema com sete equipes e 29 agentes no local; outros permaneceram guarnecendo o Convento dos Dominicanos. No chamado carro-piloto, um Chevrolet Bel-Air, ano 1956, estavam Fleury e as investigadoras Ana Teresa Leite e Estela Borges Morato, além do guarda civil João Lopes, como se fossem dois casais. “O veículo estava estacionado praticamente em frente ao local em que estaria o carro dos padres, mas do outro lado da rua. Sua missão oficial seria “aguardar a entrada de Marighella no carro dos padres, acionar os outros e dar voz de prisão”, constou de relatório do Dops.

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O Bel Air pertencia ao delegado Romeu Tuma, chefe do Serviço de Informações do Dops. O Chevrolet foi usado de última hora, segundo disse o investigador J.R.A. ao Estadão, depois que um outro carro quebrou, um Aero Willys usado pelo departamento – todos os carros usados na operação eram descaracterizados. Essa troca teria consequência na operação.

Em outro veículo, uma caminhonete, estavam escondidos seis policiais na caçamba, entre eles o soldado Djalma de Oliveira da Silva, um dos denunciados pelo MPF, que levava o pastor alemão Átila. Oliveira pertencia à antiga Força Pública.

Em outros cinco carros – todos Fuscas – estavam equipes que deveriam bloquear o quarteirão da Alameda Casa Branca, quando fossem acionadas. Em um deles havia outro denunciado, o investigador Luiz Antônio Mariano. Em outro estava o terceiro acusado: o também investigador Amador Navarro Parra. E no último veículo, o investigador Walter Francisco.

Para a alameda, os policiais conduziram os Freis Fernando e Ivo em um Fusca azul, 1969, placas 24-69-28, que sempre era utilizado para os encontros com Marighella. “Referido veículo foi conduzido pelo investigador Aduzino Uribe e escoltado pelos veículos 1 e 5 (dois dos Fuscas com policiais)”. Quando chegaram à alameda, o policial desceu do carro e os dois dominicanos foram obrigados a passar para o banco dianteiro – Frei Ivo assumiu o lugar do motorista e Fernando, sentou no banco do carona. Todas as equipes de policiais estavam com rádios walkie-talkies.

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Por volta das 20 horas, surgiu Marighella com seu disfarce – ele usava uma peruca preta –, a pé, subindo a Alameda Casa Branca em direção à Avenida Paulista. “Nesse momento, Fleury transmitiu a ordem para que todas as viaturas ocupassem suas posições”, escreveu o procurador. O líder comunista vinha pela calçada oposta à do carro dos religiosos e, quando ficou de frente para o Fusca, atravessou a rua, abriu a porta do Volkswagen, entrou no carro e sentou-se no banco traseiro. Nesse momento, os policiais cercaram o veículo e retiraram os freis de de seu interior.

Carro onde Frei Ivo e Fernando de Brito esperavam Marighella no dia em que o Dops encurralou o guerrilheiro Foto: Acervo/Estadão

De acordo com a denúncia, Fleury se aproximou do veículo e “efetuou o primeiro disparo executório contra a vítima”. “Na sequência, a vítima foi atingida por outros três ou quatro disparos. Inclusive, o disparo fatal que atingiu Marighella foi dado com arma a curtíssima distância, de menos de oito centímetros, ou seja, quase encostada no corpo da vítima. Referido disparo, dado no tórax de Marighella, atravessou o seu corpo e saiu pelas costas. Provavelmente o disparo foi feito pela carabina calibre 44 de João Carlos Tralli, enfiada por uma janela do Fusca, quase grudada em Marighella.”

De fato. O investigador J.R.A., um dos 43 participantes da operação, contou ao Estadão que o autor do disparo que matou o líder comunista foi o investigador Tralli. “Foi o Tralli, que usou uma espingarda Winchester calibre 44. O Tralli na verdade se apavorou. O Marighella era um mito. Achavam que estaria com uma baita segurança. O nome dele era tão forte quanto o do Fleury. Ninguém achou que ele ia dar uma moleza de ir sozinho a um ponto.”, disse o investigador.

Na mesma operação morreram a investigadora Estela Morato, do Dops e o protético Friedrich Rohmann, ambos baleados por policiais do departamento. Estela estava no Chevrolet Bell Air de Tuma, com Fleury. Rohmann entrou na Alameda Casa Branca com seu Buick preto, furando o cerco policial, " o que levou os agentes a acreditarem que se tratava de um veículo do aparato de segurança da ALN”.

“O problema é que nem todo o pessoal da operação sabia do (Chevrolet) Bell Air. Aí o dentista (na verdade o protético Friedrich Rohmann, que morreu) furou o bloqueio. E o pessoal atirou. Teve gente que descarregou mais de um pente de metralhadora. Foi fogo amigo, assim como o Tucunduva (delegado Rubens Tucunduva, também ferido na ação). Eu estava lá com meu parceiro, o Celso Cipriani. A Estela trabalhava no SI, como eu. Eu estava a uma quadra de onde o Marighella foi morto. Tinha muita gente lá.”, contou o investigador.

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Para o procurador, não há dúvida: “Marighella morreu imediatamente no local, sem que tivesse tido chances de se defender. A todo o tempo esteve sentado no banco traseiro do veículo, sem que pudesse correr, fugir ou reagir”.

O líder comunista Carlos Marighella morto em emboscada montada pelo Dops, em 1969, na Alamenda Casa Branca, nos Jardins, em São Paulo Foto: ArquivAcervo/Estadão

O procurador conseguiu reconstituir a operação que levou à morte de Marighella por meio de um documento do Dops, assinado pelo delegado Ivair Freitas Garcia, do Dops, datado de 9 de novembro de 1969, que mostra uma versão detalhada dos fatos. “A intenção deste relatório era realizar a promoção meritória de todos que, de alguma forma, auxiliaram na operação, no total de 43 agentes da repressão.”

De acordo com o procurador, é “incontroverso” que Marighella não reagiu. “O Laudo de Exame em Peças 3871/69, acerca da pesquisa de resíduo de combustão de pólvora no revólver que teria sido apreendido dentro da pasta que portava Carlos Marighella, deu negativo. Isso significa que a vítima não chegou a disparar nenhum tiro. Em verdade, todos os disparos partiram de fora para dentro do veículo.”

Na época, a polícia justificou os disparos, alegando que Marighella segurou uma pasta, como se quisesse apanhar uma arma dentro dela. Para o procurador, no entanto, o relato oficial reconhece que o líder comunista não havia empunhado sua arma, muito menos disparado. “É incontroverso o fato de que Marighella não estava com a sua arma em punho no momento que foi sumariamente executado. O fato de segurar sua pasta não seria justificativa para a execução da vítima, que poderia ser facilmente rendida.”

Os três investigadores e o soldado da Força Pública denunciados que participaram da emboscada foram promovidos “por bravura e ação meritória” por terem colaborado “de forma decisiva, cada um dentro do setor que lhe foi destinado, cumprindo as missões que permitiram o completo êxito do plano de ação elaborado para a localização e prisão do líder terrorista Carlos Marighella”. É o que registrou o relatório do delegado Ivair Freitas Garcia.

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A Lei da Anistia e o julgamento do Supremo

Por fim, o procurador afirma que a morte de Marighella seria um dos delitos “cometidos em contexto de ataque sistemático e generalizado à população, em razão da ditadura militar brasileira, com pleno conhecimento desse ataque, o que os qualifica como crimes contra a humanidade – e, portanto, imprescritíveis e impassíveis de anistia.

Até agora somente um agente do Dops de São Paulo foi condenado por um crime ocorrido durante a ditadura militar. No Rio, um militar está sendo processado sob a acusação de estuprar uma presa. Uma das testemunhas ouvidas pelo procurador no caso Marighella foi o jornalista José Maria Mayrink. Então profissional do Estadão, ele foi o primeiro repórter a chegar ao local da emboscada e conhecia os Freis Ivo e Fernando. Mayrink faleceu em 2020. Ele contou aos procuradores detalhes sobre a tortura dos dominicanos.

Procurador da República Andrey Borges de Mendonça Foto: Felipe Rau/Estadão

A defesa de policiais e de militares sempre alega que os crimes, por acaso cometidos durante a ditadura, não podem ser punidos em razão da Lei de Anistia. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que questionava a legalidade da extensão da anistia para os agentes do regime militar que haviam sido responsáveis por violações dos direitos humanos.

Relator da ADPF, o ministro Eros Grau votou pelo reconhecimento da anistia e que ela havia sido recepcionada pela Constituição Federal de 1988. Para ele, a Lei de Anistia, a Emenda Constitucional 26/85 e o Artigo 8° das Disposições Transitórias da Constituição de 1988 afirmavam que a anistia foi “ampla, geral e irrestrita” para os “crimes políticos e conexos”. Ao Estadão, o ministro disse: “O que o tribunal fez quando julgou a ADPF? Ele não fez justiça, ele aplicou a lei e a Constituição.” Agora, mais uma vez, a Justiça deverá dar seu veredicto a respeito. Desta vez, envolvendo o caso de Carlos Marighella.

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