A Lei 11.101/05 ("LRF"), que regula as recuperações judiciais e extrajudiciais e as falências, excluiu, em seu artigo 49, parágrafo 3º, dos efeitos da recuperação judicial o credor cujo crédito seja garantido por alienação fiduciária de bens, estabelecendo que "prevalecerão os direitos sobre a coisa e as condições contratuais".
A alienação fiduciária é um instrumento normalmente utilizado para garantir operações financeiras por meio do qual o devedor ou terceiro transfere ao credor a propriedade de determinado bem, a qual será devolvida quando da quitação integral da dívida garantida. A posse do bem permanece com o devedor ou terceiro garantidor durante todo o período da relação contratual. Em caso de inadimplemento das obrigações garantidas pela alienação fiduciária, o credor poderá executar a garantia e retomar a posse do bem alienado fiduciariamente. Caso o bem dado em alienação seja um crédito - também chamados de "recebíveis" -, a operação de garantia passa a ser denominada cessão fiduciária.
Um dos motivos que fundamentou a opção de não submeter determinados créditos à recuperação judicial, dentre eles, aquele garantido por alienação e/ou cessão fiduciária, foi incentivar a redução do custo de crédito no Brasil.
Desde a entrada em vigor da LRF, a extensão da não-submissão do crédito garantido por alienação e/ou cessão fiduciária gerou intensos debates. Um dos questionamentos que mais recentemente têm se deparado os tribunais envolve a classificação e o valor dos créditos com garantia fiduciária. Tais créditos devem ser tidos como totalmente extraconcursais ou eles deverão ser listados como extraconcursais até o limite do valor do bem dado em garantia na data da recuperação judicial?
De acordo com dois recentes acórdãos da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJSP"), nos agravos de instrumento de nºs. 2174315-41.2021.8.26.0000 e 2281729-35.2020.8.26.0000, interpostos no contexto da recuperação judicial do Grupo Atvos, um dos maiores grupos sucroalcooleiros do Brasil, os bens devem ser avaliados, para fins de definição do limite de extraconcursalidade do crédito garantido por alienação fiduciária, no momento em que o credor exercer o direito de executar a garantia, isto é, retomar o bem que estava na posse do seu devedor.
Nesse caso, as devedoras defendiam que a classificação do crédito deveria se realizar a partir da apuração do valor da garantia fiduciária na data do ajuizamento da recuperação judicial, a fim de se evitar distorções na lista de credores.
O órgão colegiado no julgamento sob a relatoria do desembargador Alexandre Lazzarini, porém, rejeitou a tese das devedoras, encampando aquela defendida pelos credores, e definiu que "somente depois de excutido o bem alienado fiduciariamente é que se apura o eventual saldo remanescente para posterior habilitação na recuperação como crédito quirografário".
De acordo com a câmara julgadora, eventual desvalorização da garantia não altera a natureza do crédito e tampouco a LRF faz qualquer ressalva nesse sentido, razão pela qual ainda que haja redução do valor do bem garantido em determinado momento, a diferença não se torna automaticamente um crédito sujeito à recuperação judicial.
O tribunal salientou, ainda, que o acolhimento da tese das recuperandas importaria em um enfraquecimento do instituto da alienação fiduciária, gerando insegurança jurídica e elevando o risco na concessão de financiamentos, o que traria reflexos nos juros praticados pelas instituições financeiras e prejuízos a todos os stakeholders.
A impossibilidade de acolhimento da interpretação defendida pelas devedoras estaria também relacionada ao fato de que esta "mudaria por completo o cenário traçado pelas partes quando da celebração do contrato de financiamento", o que seria indevido por violar o pactuado entre as partes e a boa-fé, em especial dado que a garantia fiduciária teria sido essencial à concessão do financiamento e a recuperação judicial não exime a empresa em crise de cumprir com suas obrigações contratuais.
Ao nosso ver, o entendimento exarado pelo TJSP na recuperação judicial do Grupo Atvos está correto na medida em que o bem alienado fiduciariamente - independentemente de seu valor no momento da recuperação judicial - garante a dívida e a integralidade do valor obtido em sua execução deve ser utilizada na amortização do crédito. Caso contrário, autorizar-se-ia a criação de uma indevida limitação à garantia originalmente contratada, o que beneficiaria, sem qualquer fundamento legal, o devedor/prestador da garantia e iria de encontro ao expressamente previsto no art. 49, §3º, da LRF.
Essa posição, ao nosso ver, além de coerente com o próprio entendimento da Segunda Seção do STJ, manifestado no Conflito de Competência n. 128.194/GO, é bastante relevante para o mercado de crédito nacional por prestigiar os institutos da cessão fiduciária e alienação fiduciária, comumente utilizados como garantia de financiamentos, especialmente por reduzirem os riscos para os financiadores em caso de inadimplemento do devedor, o que, por sua vez, reduz os custos dos financiamentos e as taxas de juros praticadas.
*Renata Oliveira, André Ericsson e Anna Carolina Abrantes são, respectivamente, sócia e advogados da área de Contencioso do Machado Meyer Advogados
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