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Opinião | É constitucional a obrigatoriedade do exame criminológico?

O bom comportamento é um dos elementos do mérito carcerário (requisito subjetivo), mas não o único. Não basta o bom comportamento carcerário para que o mérito se faça presente. Outros elementos devem ser analisados pelo juízo da execução penal, sendo necessário, de acordo com as novas regras, a realização de exame criminológico

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convidado
Por César Dario Mariano da Silva
Atualização:

Como não poderia deixar de ser, todas as vezes em que se publica norma que vá proteger a sociedade dos criminosos, surge alguma tese defensiva no sentido da inconstitucionalidade dela.

O § 1º, do artigo 112 da Lei de Execução Penal, com sua nova redação, impõe necessariamente, para a progressão de regime, a realização do exame criminológico, atendendo ao princípio da individualização da pena e ao sistema progressivo de regime.

Diz a norma com sua nova redação:

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Art. 112 (...)

§ 1º Em todos os casos, o apenado somente terá direito à progressão de regime se ostentar boa conduta carcerária, comprovada pelo diretor do estabelecimento, e pelos resultados do exame criminológico, respeitadas as normas que vedam a progressão.

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O princípio da individualização da pena está previsto no artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal, e dispõe que caberá à lei regular a individualização da pena.

A individualização da pena desenvolve-se em três etapas: a legislativa, a judicial e a executória.

Na primeira, caberá à lei fixar as penas que serão aplicadas para cada tipo penal. A quantidade da pena deve guardar proporção com a importância do bem jurídico tutelado e a gravidade da ofensa. Por isso, cada tipo penal prevê quantidade mínima e máxima de pena e, em alguns casos, espécies distintas de sanções penais, que podem ser aplicadas, dependendo do caso, alternativa ou cumulativamente.

Na etapa judiciária, caberá ao juiz, à vista da infração cometida, escolher a pena que será aplicada dentre as cominadas no tipo penal, dosar a sua quantidade entre o mínimo e máximo previsto, fazer inserir causas que possam aumentar ou diminuir a reprimenda, fixar o regime de cumprimento da pena privativa de liberdade, bem como analisar possível substituição por pena mais branda.

Cuida-se de critério em que o julgador possui discricionariedade regrada. Isso porque, embora tenha liberdade de escolha quanto à pena que irá aplicar, bem como sua quantidade, deve obediência a regras previstas no Código Penal.

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Por fim, após a aplicação da pena, há necessidade de sua execução. As diretrizes quanto à execução da pena estão previstas principalmente no Código Penal e na Lei de Execuções Penais.

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Corolário lógico da individualização da pena é o sistema progressivo de regime.

O sistema progressivo de regime foi instituído com o propósito de reinserir gradativamente o preso no convívio social. Ele cumprirá a pena em etapas e em regime cada vez menos rigoroso, até receber a liberdade. Durante esse tempo, o preso será avaliado e só será merecedor da progressão caso a sua conduta assim recomende.

A pena deve ser individualizada para cada condenado. Individualizar a pena consiste em propiciar ao preso as condições necessárias para que possa retornar ao convívio social. A individualização deve ater-se a métodos científicos, nunca improvisados, iniciando-se com a classificação dos detentos, de forma que possam ser destinados aos programas de execução mais apropriados de acordo com suas necessidades pessoais. A individualização da pena é direito constitucional previsto no art. 5º, XLVI, 1ª parte, da CF.

Para a progressão de um regime para o outro há necessidade do cumprimento de parcela objetivamente prevista da pena no regime em que se encontra (requisito objetivo) e a presença do mérito (requisito subjetivo).

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O mérito do condenado para a progressão de regime prisional (requisito subjetivo) diz respeito a seu bom comportamento carcerário e aptidão para retornar ao convívio social.

Para que possa obter a progressão, não basta o bom comportamento carcerário, sendo necessário, também, que esteja apto a ser colocado em regime menos rigoroso.

A grande finalidade do sistema progressivo é justamente a reinserção gradual do condenado ao convívio social e, por isso, a necessidade de a progressão ser paulatina, passando-se em um regime de cada vez até que possa obter a liberdade.

O bom comportamento é um dos elementos do mérito carcerário (requisito subjetivo), mas não o único. Não basta o bom comportamento carcerário para que o mérito se faça presente. Outros elementos devem ser analisados pelo juízo da execução penal, sendo necessário, de acordo com as novas regras, a realização de exame criminológico.

O exame criminológico tem a finalidade de obter elementos indispensáveis à classificação do sentenciado e à individualização da execução penal.

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Trata-se de perícia oficial e deve ser realizada por profissionais habilitados para tanto (psiquiatras, médicos, psicólogos e assistentes sociais). Será utilizado, também, para verificar se o sentenciado reúne as condições subjetivas necessárias para o livramento condicional, nos crimes dolosos cometidos com o emprego de violência ou grave ameaça à pessoa (art. 83, parágrafo único, do CP), e para a progressão de regime prisional.

A individualização da pena é direito constitucional do condenado (art. 5º, XLVI, 1ª parte, da CF) e consiste em propiciar ao preso as condições necessárias para que possa retornar ao convívio social. Deve ater-se a métodos científicos e inicia-se com a classificação do detento, de forma que possa ser destinado aos programas de execução mais apropriados para a sua recuperação e de acordo com suas necessidades pessoais.

O exame criminológico foi oficialmente instituído no sistema prisional do Brasil pela Lei de Execução Penal, que é a fonte científica para se angariar informações sobre a pessoa e personalidade do sentenciado.

O exame criminológico é espécie do gênero exame de personalidade. Ele:

[...] parte do binômio delito-delinquente, numa interação de causa e efeito, tendo como objetivo a investigação médica, psicológica e social, como reclamavam os pioneiros da Criminologia. O segundo consiste no inquérito sobre o agente para além do crime cometido. Constitui tarefa exigida em todo curso do procedimento criminal e não apenas elemento característico da execução da pena ou da medida de segurança. Diferem também quanto ao método esses dois tipos de análise, sendo o exame de personalidade submetido a esquemas técnicos de maior profundidade nos campos morfológico, funcional e psíquico, como recomendam os mais prestigiados especialistas[...][1].

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O exame criminológico é multidisciplinar, sendo composto pelo exame médico, exame psicológico, exame psiquiátrico e o estudo social, podendo, se o caso, serem realizados outros a depender do caso concreto. Contudo, normalmente são esses os exames que devem ser elaborados.

O exame médico analisa todo o aspecto fisiológico do sentenciado. Busca por meio de alterações médicas, inclusive hereditárias, relacionar o sentenciado com a inaptidão social, procurando, assim, encontrar a causa fisiológica para o delito cometido.

O exame psiquiátrico pesquisa a existência de sinais ou sintomas de doenças mentais. Emprega o exame psíquico, podendo, se o caso, o psiquiatra realizar outros exames, tais como ressonâncias magnéticas, eletroencefalograma, tomografias, dentre outros.

O exame psicológico procura a ligação entre a personalidade do sentenciado e o crime cometido. São realizados testes psicológicos e observado o comportamento do sentenciado, visando, principalmente, saber se o crime foi algo eventual ou se é da personalidade do condenado.

Por fim, no exame social são colhidas informações sobre a vida do criminoso fora do cárcere. Sua interação com a família, amigos, ou seja, seu convívio social. Procura-se identificar se o crime está relacionado com a influência social vivida pelo sentenciado. Referido exame é conduzido por assistente social, mas nada impede que haja participação de outros profissionais, como sociólogos e antropólogos.

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Os diversos exames que compõem o criminológico devem ser analisados em conjunto e, inclusive, com os demais elementos constantes dos autos da execução para que seja individualizado o tratamento penal que deverá ser dado ao sentenciado.

Ele também é importantíssimo elemento para aferir se o sentenciado já se encontra apto a ser liberado condicionalmente ou progredido de regime prisional. Ou seja, uma das suas maiores finalidades é constatar a probabilidade de reincidência.

Pela regra anterior, o Juiz poderia determinar o exame criminológico quando houvesse necessidade de ser aferido o mérito do condenado. Isso porque o art. 33, § 2º, do Código Penal, diz que a pena privativa de liberdade deve ser executada de forma progressiva e segundo o mérito do condenado.

Com o novo regramento, o exame criminológico SEMPRE deverá ser realizado, justamente para se ter a necessária certeza de que o condenado não colocará a sociedade em risco ao ser reinserido em meio aberto, o que pode ocorrer, inclusive, no regime semiaberto com o trabalho externo e a possibilidade de saídas temporárias para o estudo.

Seria um contrassenso permitir a progressão, ou até mesmo a liberdade, para alguém que ainda não possui condições de retornar ao convívio social, mostrando-se perigoso para a coletividade. Assim, se o exame criminológico concluir que o preso não tem condições de progredir de regime prisional, o juiz deverá indeferir a progressão, dada a natureza do sistema progressivo de regime, que pressupõe a readaptação gradativa do preso à liberdade.

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O Juiz não pode ficar adstrito à análise de um mero atestado de conduta carcerária para verificar o mérito do sentenciado para a progressão de regime prisional. Quem deve analisar se há, ou não, mérito para a progressão é o Juiz das Execuções Criminais e não o diretor da unidade prisional ao emitir o atestado de conduta carcerária.

É de atribuição do legislador ordinário, no uso da prerrogativa que lhe foi deferida pela Constituição Federal, fixar os parâmetros dentro dos quais o julgador deverá realizar a concreção ou a individualização da pena (art. 5º, XLVI), o que implica, inclusive, a determinação de obrigatoriedade da realização do exame criminológico em proteção da sociedade ordeira.

Se a maior crítica, na prática, é a demora na realização dos exames, que se contratem mais profissionais e que se organizem as unidades prisionais para que sejam elaborados no menor tempo possível, não sendo a incúria estatal desculpa para colocar a sociedade em risco com a inserção no seu convívio de criminosos com probabilidade de reincidir.

Destarte, perfeitamente constitucional a novel norma, vez que o legislador, atendendo a comando constitucional expresso, criou um requisito a mais para a progressão de regime prisional.

Contudo, observo que a obrigatoriedade alcança apenas os fatos ocorridos após a entrada em vigor da novel norma. Como ela possui natureza mista (processual/penal) e reflete diretamente no direito penal, já que pode implicar o indeferimento da progressão de regime prisional, só pode ser aplicada a crimes praticados após a sua vigência, em obediência ao princípio da anterioridade da lei penal mais gravosa[2].

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Não vejo como dizer que se trata de norma processual penal pura, haja vista também ser composta por conteúdo material, vez que reduz o direito subjetivo do condenado à progressão de regime, ou seja, ao cumprimento de pena em regime menos rigoroso, matéria típica de direito penal.

Com efeito, sendo os fatos anteriores ao novo regramento, o exame criminológico não se faz obrigatório, mas facultativo, podendo ser realizado quando necessário, nos termos da Súmula 439 do STJ:

“Admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada”.

Deixou claro o Egrégio Superior Tribunal de Justiça que o Magistrado pode determinar a realização do aludido exame pericial ao analisar o caso concreto e em decisão devidamente fundamentada.

Saliento, por oportuno, que o Magistrado não está vinculado à conclusão do exame criminológico, que é uma espécie de perícia oficial, podendo refutá-lo fundamentadamente, no todo ou em parte, tanto para conceder quanto para indeferir a progressão de regime, nos exatos termos do artigo 182 do Código de Processo Penal.

Enfim, muito embora seja perfeitamente constitucional o § 1º, do artigo 112 da Lei de Execução Penal, norma criada pelo Poder Legislativo por mandamento constitucional para a correta individualização da pena e para proteger a sociedade da vinda para seu seio de condenado que ainda não tenha assimilado a terapêutica penal com grande possibilidade de reincidência, cuida-se de norma mista (processual/penal), com reflexos diretos no direito penal, e, por isso, somente pode ser aplicada a crimes cometidos após a sua entrada em vigor por ser prejudicial ao condenado.

PS: segue abaixo link de vídeo em que explico com maiores detalhes o exame criminológico:

[1] Cf.: Item 34 da Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal.

[2] O princípio da reserva legal também encerra o princípio da anterioridade da lei penal, segundo o qual somente o fato posterior à vigência da lei penal mais grave será alcançado por ela. A norma penal vige para o futuro e retroage apenas quando beneficiar o acusado. Com efeito, para que possa ser aplicada, a norma penal mais gravosa deve ter vigência anterior ao fato criminoso.

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Foto do autor César Dario Mariano da Silva
César Dario Mariano da Silvasaiba mais

César Dario Mariano da Silva
Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá. Foto: Arquivo pessoal
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