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Opinião|É dando que se recebe: presentes e brindes na antessala da corrupção

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Questões éticas envolvendo presentes e corrupção não são algo novo. Desde tempos remotos, a humanidade tem enfrentado dilemas morais nesse âmbito. Por volta de 1500 a.C., histórias como a de Gimil-Ninurta, um cidadão pobre que ofereceu uma cabra ao prefeito de Nippur em troca de ajuda, refletem os desafios da sociedade com o tema. Trazendo a reflexão para os tempos atuais, o foco contemporâneo na prevenção da corrupção tem nos levado a dedicar maior atenção às versões mais sutis do problema - incluindo a prática milenar de dar e receber presentes.

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Em contextos organizacionais onde a linha entre a cortesia e a corrupção pode ser tênue, políticas para promover uma maior transparência às práticas de trocas de presentes tornam-se fundamentais para salvaguardar a integridade das instituições e de seus colaboradores.

Entretanto, há muitas reflexões a se considerar ao elaborar e aplicar uma política de conformidade eficaz nessa área. Ao nos debruçarmos sobre o tema, podem surgir perguntas como: Quando um presente é considerado um suborno e quando faz parte de interações sociais cotidianas? Qual é a intenção daquele que oferece um presente? Há algo que alguma das partes espera em troca? Essas trocas são realizadas de forma transparente? Há razão para esconder algo neste ato?

Pensar em respostas a esses questionamentos pode ser uma tarefa complexa, mas é importante ter em mente que, mesmo existindo uma política e procedimentos muito bem delineados, o aspecto comportamental irá desempenhar um papel crucial na conformidade.

Partimos de algo intrínseco às sociedades humanas: criamos uma tendência natural à reciprocidade para com quem nos oferece presentes ou favores. De modo muitas vezes inconsciente, tendemos a valorizar pessoas que são generosas e, de algum modo, retribuir essa generosidade.

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Enquanto elemento das práticas sociais e comerciais, na maior parte das vezes essa tendência à reciprocidade pode ser algo inofensivo. Nossas estruturas de relacionamento estão baseadas na confiança. Quando ocorre um intercâmbio de bens e favores entre indivíduos essa confiança é reforçada, ajudando a reduzir riscos e incertezas quanto às intenções alheias, oferecendo segurança, estabilidade e significado em muitas situações da vida social.

Nossa predisposição à reciprocidade passa a ser um problema significativo quando o oferecimento de presentes possui uma intenção desonesta velada, não sendo percebida como um suborno e, principalmente, quando está envolvida uma prestação de serviços públicos. Sob esse ponto de vista, é muitas vezes reconhecida por agentes públicos como uma prática branda ou inofensiva, mas que pode levar a uma reciprocidade na forma de algum tipo de tratamento preferencial e, dessa forma, à corrupção.

As ciências comportamentais também revelam que somos especialistas em nos auto enganar. Tendemos a subestimar o impacto de potenciais situações que possam desvirtuar nossos julgamentos - incluindo o recebimento de presentes. Dessa forma, nos sentimos obrigados a retribuir presentes ou favores recebidos, mesmo que isso implique em comportamentos racionalmente indesejados - e não nos sentimos culpados quanto a isso.

A cultura organizacional pode influenciar a percepção dos funcionários sobre a aceitabilidade de brindes e presentes. Os ambientes organizacionais podem ser muito poderosos em pressionar indivíduos a agirem em conformidade com o comportamento de grupos. Se em determinada organização pública é “costume” receber cestas de Natal dos fornecedores, um colaborador poderia enfrentar dificuldades caso decidisse devolver ou denunciar tal prática.

Um ponto de partida para a implementação de uma política efetiva sobre o tema passa por comunicar claramente os padrões de compliance adotados para o recebimento de brindes e presentes para todos os colaboradores. Diretrizes claras e específicas são essenciais para orientar as organizações em meio a cenários que podem ser complexos e cinzentos.

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Pode-se aventar que, diante de tantos riscos, as organizações poderiam adotar uma política de “tolerância zero” em relação ao recebimento de presentes. Estudos têm demonstrado que essa prática é capaz de piorar o problema, levando os colaboradores a receberem presentes de forma dissimulada ou a aceitarem ofertas em dinheiro, amplificando o problema da corrupção. Uma abordagem que limite o recebimento de presentes a determinados valores parece, de forma geral, uma diretriz mais adequada.

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Em última análise, a prevenção da corrupção sempre nos exige uma abordagem multifacetada. Além da existência de políticas e regulamentações claras relacionadas a brindes e presentes, é essencial complementá-las com treinamentos regulares, canais de denúncia confiáveis e um monitoramento constante. Também essas políticas devem fazer parte de um corpo maior de promoção de uma cultura organizacional que valorize a transparência e a integridade. Ao adotar uma postura proativa em relação à prevenção à corrupção - incluindo as questões relacionadas ao recebimento e ofertas de brindes e presentes - as organizações não apenas protegem sua reputação, mas também contribuem para um ambiente de negócios mais justo e ético.

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica

Convidado deste artigo

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Daniel Aguiar Espínola
Coordenador de Riscos e Integridade no Ministério do Planejamento e Orçamento, auditor federal de Finanças e Controle, mestre em Governança e Desenvolvimento pela Escola Nacional de Administração Pública - ENAP e membro do Observatório de Economia e Gestão de Fraude - OBEGEF
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