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Opinião|Gênero, gravidez precoce e trabalho infantil: um olhar crítico sobre a realidade das mulheres

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Recentemente, uma matéria alarmante trouxe à tona dados preocupantes sobre a situação de jovens no Brasil: o trabalho, o desinteresse e a gravidez estão tirando cerca de 9 milhões de jovens da escola. Essa problemática ganha contornos ainda mais graves quando analisamos a relação entre gênero e trabalho infantil, especialmente no contexto da gravidez precoce e da falta de políticas públicas eficazes.

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A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua 2022, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em dezembro de 2023, revelou que o Brasil tem quase 1,9 milhão de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, o equivalente a 4,9% do total de jovens entre 5 e 17 anos no país.

Ao abordarmos o tema do trabalho infantil sob a perspectiva de gênero, é crucial destacar que as principais vítimas desse cenário são as mulheres cisgêneras. Esta constatação reflete as estruturas sociais que relegam as mulheres a papeis historicamente associados ao cuidado, ao trabalho doméstico e à reprodução, em detrimento de oportunidades educacionais e profissionais. Segundo estudo elaborado pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil a partir de dados da PNAD Contínua Anual, em 2019, 85,2% das crianças e adolescentes nas atividades domésticas eram mulheres, e 70,8% eram negras.

A exploração sexual de crianças e adolescentes também atinge, em uma frequência muito maior, as mulheres. Um levantamento da Secretaria Estadual de Saúde, em 2022, a partir de dados de atendimentos de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, mostra que 70% das vítimas são do sexo feminino. A gravidez precoce, por exemplo, é um dos desdobramentos mais dramáticos dessa realidade. Muitas adolescentes, especialmente aquelas pertencentes a grupos raciais e étnicos historicamente marginalizados, encontram-se em situações de vulnerabilidade extrema.

No ano passado, pelo menos 30 meninas e adolescentes yanomami engravidaram, vítimas de abusos cometidos por garimpeiros em Roraima. Também foram constatados acolhimentos irregulares de crianças Yanomami e até processos de adoções ilegais em curso. Outro exemplo, que comoveu o país e o mundo, foi o caso da menina de 11 anos que teve o acesso ao aborto legal impedido após um estupro em Santa Catarina.

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A falta de acesso a informações sobre saúde sexual e reprodutiva, somada à escassez de políticas públicas que promovam o planejamento familiar e o apoio às jovens mães, contribui para um ciclo de evasão escolar e inserção precária no mercado de trabalho. Nesse contexto, é importante ressaltar que o sub-recorte racial e étnico desempenha um papel crucial. Mulheres negras e indígenas, por exemplo, enfrentam barreiras adicionais devido à interseccionalidade de discriminações que sofrem. A maternidade precoce muitas vezes “condena” de forma irremediável essas jovens, que se veem obrigadas a abandonar seus estudos e a ingressar precocemente no mercado de trabalho, muitas vezes em condições de informalidade e de exploração.

As atividades compreendidas na Lista TIP (conceituar) são proibidas para maiores de 16 e menores de 18 anos. Em que pese o trabalho seja permitido para jovens maiores de 16 anos, o trabalho infantil dito “em suas piores formas” compreende atividades que são precarizadas perigosas, suscetíveis a abusos de toda sorte e, portanto, não franqueadas a jovens menores de idade, ainda que “maiores” para o trabalho. Essas atividades classificadas como piores formas também afetam de forma desproporcional as meninas por conta do trabalho doméstico. O trabalho doméstico acontece na inviolabilidade do lar, o que sujeita essas meninas a abusos morais, psicológicos e físicos em um ambiente no qual se encontram extremamente vulneráveis. Além dos riscos para a saúde e para um desenvolvimento físico e mental saudável, essas jovens enfrentam uma série de desafios que impactam negativamente a sua trajetória educacional e profissional.

Diante desse panorama, é fundamental que as políticas públicas sejam direcionadas de forma específica e eficaz para enfrentar essas questões. É necessário investir em educação sexual nas escolas, garantindo o acesso à informação e aos métodos contraceptivos. Além disso, programas de apoio às jovens mães, como creches públicas de qualidade e assistência social, são essenciais para romper o ciclo de evasão escolar e trabalho irregular.

É urgente que a sociedade como um todo reconheça a gravidade desses problemas e atue de forma coletiva para promover uma realidade mais justa e igualitária para essas jovens, respeitando-se especialmente aquelas que enfrentam as intersecções de discriminações de gênero, raça e classe. Somente com políticas inclusivas e efetivas poderemos garantir um futuro digno e promissor para todas as meninas e adolescentes do país.

Convidado deste artigo

Foto do autor Luciana Veloso Baruki
Luciana Veloso Barukisaiba mais

Luciana Veloso Baruki
Coordenadora estadual da Fiscalização do Trabalho Infantil no Ministério do Trabalho em São Paulo, administradora de empresas (FGV), advogada, mestre e doutora em Direito, médica, pós-graduanda em Saúde Mental e Psiquiatria. Idealizadora e produtora do perfil @assedionet nas redes sociais, que tem por objetivo apoiar as vítimas e ajudar organizações no processo de investigação e apuração de responsabilidades em matéria de assédio e discriminação
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