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O equívoco da decisão do HC 175.048 do Supremo Tribunal Federal

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Por João Paulo Martinelli e Leonardo Schmitt de Bem
João Paulo Martinelli e Leonardo Schmitt de Bem  

No dia 28 de abril, foi julgado o HC 175.048, pela 1.ª Turma do STF, de relatoria do Ministro Marco Aurélio. Na decisão, prevaleceu o entendimento sobre a possibilidade de o juiz arguir a testemunha antes das partes e que o ato somente será anulado se houver comprovação de prejuízo à defesa. Com todo respeito que a Egrégia Corte merece, ouso discordar do teor do julgamento e o faço com base no modelo acusatório de nosso processo.

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A decisão final apresenta um equívoco insustentável que não poderia ter lugar na mais alta Corte brasileira. Ao decidir que o juiz pode fazer a inquirição antes das partes, apresenta-se um problema prévio ao objeto do julgamento: a possibilidade de o juiz inquirir a testemunha. No sistema acusatório, adotado pela Constituição Federal e pela Convenção Americana de Direitos Humanos, a produção de provas cabe apenas à defesa e à acusação, não a quem vai julgar posteriormente. Portanto, sequer deveria haver apreciação a respeito do momento em que o magistrado poderia arguir a testemunha, pois esta atribuição é exclusiva das partes.

O sistema processual acusatório tem como núcleo a presunção de inocência, pois o acusado não é mero objeto processual, e sim sujeito de direitos. Ademais, também é característica deste sistema a nítida separação entre juiz, acusação e defesa, todos com o mesmo grau de relevância para o processo. A impossibilidade de um juiz produzir provas de oficio é garantia de um julgamento imparcial, restrito àquilo que as partes lhe entregar.

Nosso processo penal deve sempre ser interpretado à luz da Constituição Federal, extirpando aquilo que com ela não se compatibiliza, tendo como referencial, sempre, que o Código de Processo Penal foi decretado durante o Estado Novo, sob a égide da chamada Constituição Polaca. Acrescenta-se, ainda, que nosso Código foi inspirado na legislação fascista, com direito a elogios ao Código Rocco, da Itália de Mussolini¸ na Exposição de Motivos. Obviamente, pouco, ou quase nada, da redação original do CPP pode ser aproveitado no Estado democrático de direito.

O processo penal dos Estados autoritários é predominantemente inquisitório, ao contrário do sistema acusatório, que deve prevalecer nas democracias. No final de 2019, a Lei 13.964 inseriu o art. 3º-A no CPP, que instituiu que "o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação". A novidade busca a adequação do processo penal aos ditames da Constituição Federal, de 1988, e, com isso, obriga o profissional do direito a afastar diversos dispositivos regularmente aplicados, dentre os quais aqueles que permitem ao juiz produzir prova de ofício, ou seja, por conta própria.

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A leitura do novo art. 3º-A em conjunto com a Constituição Federal leva à conclusão de que o art. 212, objeto do julgamento do STF, somente autoriza a inquirição das testemunhas pelas partes. Se nosso sistema é acusatório e o magistrado não pode substituir a atuação probatória, nenhuma prova poderá ser produzida de ofício, nem poderá haver complementações de pontos não esclarecidos, já que a dúvida na produção probatória deve sempre ser interpretada a favor do réu. Fica claro que a novidade legislativa, ainda, afastou de vez o chamado "princípio da verdade real", cuja finalidade é entregar ao juiz poderes superiores ao que o sistema acusatório permite. Apesar de estar com vigência suspensa pelo STF, o art. 3º-A sequer seria necessário, pois a Constituição nem de longe reconhece o sistema inquisitório.

Cabe ao juiz, durante a instrução criminal, zelar pela legalidade da produção de provas e agir de ofício apenas quando houver violação latente à lei. O sistema acusatório, agora expresso no CPP, não autoriza atos praticados de ofício por quem tem o poder de decisão, já que a figura do juiz inquisidor não faz parte desse modelo processual. Todos os dispositivos do Código, e de leis especiais, que autorizam a produção de provas de ofício foram tacitamente revogados pela Constituição Federal e pela Convenção Americana de Direitos Humanos, e, portanto, o STF deveria ter decidido que o juiz em nenhum momento poderá arguir as testemunhas.

*João Paulo Martinelli, advogado, doutor em Direito Penal pela USP, pós-doutor em Direito pela Universidade de Coimbra e professor titular do IBMEC-SP

*Leonardo Schmitt de Bem, professor da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul. Doutor em Direito pela Doutor em Direito Penal pela Università degli Studi di Milano (Itália) e doutor em Direitos Fundamentais e Liberdades Públicas pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha)

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