Recentemente, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por ocasião do julgamento do recurso especial nº 2.022.413/PA, afirmou, por maioria, ser possível ao juiz condenar o réu ainda que o Ministério Público (MP) tenha requerido a sua absolvição em alegações finais.
Como sustentáculo de seu raciocínio, o colegiado se valeu da redação do artigo 385 do Código de Processo Penal (CPP), que autorizaria ao magistrado, não só proferir sentença condenatória quando a acusação opina pela absolvição, como também reconhecer agravantes que não tenham sido alegadas.
Ocorre que o dispositivo em questão advém da redação originária do CPP - isto é, remonta ao ano de 1941 -, e seu conteúdo não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, que, a seu turno, consagrou o sistema acusatório, com o qual o artigo 385 é absolutamente incompatível.
Não fosse o bastante, com o advento da Lei nº 13.964/19 (intitulada como "Pacote Anticrime"), que promoveu alterações ao CPP, restou acrescido o artigo 3º-A (ainda com sua eficácia provisoriamente suspensa), cujo teor reforçou expressamente o intuito do legislador de empreender um processo penal de estrutura acusatória, vedando iniciativas por parte do juiz.
Fato é que, nos crimes de ação penal de iniciativa pública, "o Estado realiza dois direitos distintos (acusar e punir) através de dois órgãos diferentes (Ministério Público e Julgador). Essa duplicidade do Estado (como acusador e julgador) é uma imposição do sistema acusatório (separação das tarefas de acusar e julgar)" (LOPES JÚNIOR, 2020). Ora, se o MP, titular da ação penal, não realizar o seu pleno exercício, isso não significa a abertura de possibilidade ao Estado de exercer o poder de punir, dado que se trata de um poder condicionado.
Nesse contexto, pois, se extrai a impossibilidade de se admitir que o magistrado possa condenar um réu quando o órgão acusador pleiteia, por qualquer motivo que seja, a sua absolvição. Do contrário, estar-se-ia consentindo com uma condenação de ofício, dado que não subsiste mais pretensão processual do órgão acusador. Em outras palavras, tratar-se-ia de grave retrocesso ao modelo inquisitivo, posto que se exerceria o poder punitivo sem a invocação do ente responsável por exercer o múnus de acusador.
Nessa ordem de ideias, aquiescer-se com a condenação nos termos em que se manifestou o STJ violaria uma série de preceitos basilares do processo penal, tais como o princípio acusatório, a inércia da jurisdição, o princípio da necessidade do processo penal e o da correlação - dado que este último não vincula o julgador apenas aos fatos narrados na denúncia, mas à própria pretensão condenatória, isto tornaria a sentença em questão extra petita.
Ainda que a decisão daquela Corte Superior sustente que, no processo penal brasileiro, o Parquet não poderia abrir mão do dever de conduzir a ação penal até seu desfecho, ante o princípio da obrigatoriedade e indisponibilidade da ação penal, fato é que, ao pleitear a absolvição de um indivíduo, não há o abandono ou a disponibilidade da ação. Além disso, em rápida pincelada, vale anotar-se que o próprio caráter indisponível da ação penal vem sendo questionado à luz do modelo acusatório e dos novos institutos e mecanismos de diversão processual.
Enfim, espera-se que a decisão em destaque seja futuramente reformada, com o entendimento em tela devidamente superado e extirpado da ordem jurídica pátria, sob pena de se avalizar a ruptura da estrutura acusatória do processo penal brasileiro.
*Renata Rodrigues de Abreu Ferreira é advogada criminalista do escritório DSA, doutoranda em Ciências Jurídico-Criminais, pela Universidade de Coimbra. Mestre em Ciências Jurídico-Criminais, pela Universidade de Coimbra. Pós-graduada em Direito Penal Econômico e Europeu e especialista em Compliance e Direito Penal, ambos pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Universidade de Coimbra
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