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Opinião|Presença de Garibaldi

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Em viagem recente à Toscana, hospedei-me num hotel que foi residência de Giuseppe Garibaldi. Bem pertinho, em 2 de junho de 1890, ergueu-se uma estátua para eternizá-lo em Firenze. Sobre isso divaga Giovanni Papini, em sua autobiografia, na primeira parte: “Passado Remoto”. Lembra que por duas vezes seu pai foi um dos muitos florentinos que usaram a “camisa vermelha”. Na primeira vez, aos dezoito anos, quando fugiu de casa para unir-se à expedição Medici. Foi ferido por baioneta e mereceu a medalha de prata.

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Dois anos depois, agora em 1862, atendeu novamente à chamada de Garibaldi e acabou prisioneiro, junto com seu comandante, encerrado durante alguns meses na fortaleza de Bard. Segundo contava seu pai, “suave cárcere, porque os jovens garibaldinos passavam o dia todo jogando bola no pátio da fortaleza”.

O entusiasmo do pai por Garibaldi fez com que Papini fosse ler “Memórias de Garibaldi”, escrita por Dumas. Entendeu, então, porque o pai recordava com saudades o resplendor imperioso e doce dos olhos de Garibaldi. Atribuía-se a Garibaldi o milagre do Ressurgimento, com a unificação da Itália. Os que participaram da façanha eram considerados os artífices da ressurreição da terra dos mortos.

A inauguração do monumento atraiu tamanha multidão, toda vestida de vermelho, que o menino Papini sentiu-se, por um instante, contemporâneo do General Garibaldi.

O unificador da Itália ainda é reverenciado pelo povo italiano, assim como à época em que se inaugurou seu monumento. Giovanni Papini, nascido em 1881, tinha então nove anos. Impressionou-se com o espetáculo de patriotismo daquela festa, um imenso exército vestido de vermelho e deixando repletas as margens do Arno, para render seu culto ao general glorificado. Bandas de música entoavam as notas vibrantes do hino de Garibaldi. Um hino de tonalidade revolucionária, pois era a música que os republicanos contrapunham à marcha real dos Saboia. Enternecia os corações mais sensíveis com seu ritmo contagiante.

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Seguiam a banda marcial, em marcha concatenada, os autênticos sobreviventes dos Caçadores dos Alpes e dos que ficaram sendo chamados “Os Mil”. Alguns, os da primeira empreitada, em 1848, já eram idosos e tinham cabelos brancos. Mas não eram os menos marciais e brilhavam sobre seus peitos as medalhas. Outros pareciam, sob a cálida luz de junho, quase jovens, mas tão empolgados que transmitiam a perfeita imagem de quem partiria naquele momento para outra campanha.

Na imaginação do menino Giovanni Papini, aquela avenida de homens com boinas e camisas vermelhas flamejantes, que corria imponente às margens do rio florentino, era um exército de que sentia justificado orgulho. Como descendente ardoroso, filho de um desses combatentes, o exército garibaldino era o mesmo que havia desfilado pelas ruas de Milão, de Palermo e de Nápoles. Ao ver passar a bandeira, um velho pavilhão de seda que ondeava ao vento seu verde já apagado, seu branco amarelado e seu vermelho descolorido, sentiu ele percorrer um calafrio e não conseguiu reprimir as lágrimas.

No dois de junho de 1890, o desfile póstumo e inesperado era a reconstituição do espírito do Ressurgimento, que a criança só conhecia das aulas e das páginas dos livros, aos quais já se entregava com avidez.

Tal relato, extraído da deliciosa autobiografia de Giovanni Papini, serve para evidenciar o quanto faz falta para o Brasil um sentimento de legítimo orgulho por heróis que ou inexistem, ou são brevemente esquecidos. Não se vê infância e juventude brasileiras encantadas com episódios de nossa história. Não existe aquela emoção capaz de fazer reviver uma idade legendária, capaz de entusiasmar as novas gerações.

Não temos história, não tivemos guerras ou é fruto de uma educação preocupada em fazer decorar informações inservíveis para a vida e estéreis para uma das mais importantes funções da escola: a formação de cidadãos.

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O vulto de Garibaldi marcou tanto o menino, que ele é citado inúmeras vezes na autobiografia desse notável escritor italiano, que faleceu em sua cidade natal, Florença, em 8 de julho de 1956. Admirador de sua obra, desde adolescente, desta vez coube-me a satisfação de passar pela casa em que viveu, ainda preservada, num país que cultua os seus heróis e não deixa demolir os marcos arquitetônicos destinados a perpetuar a sua presença. O desapego à memória e às tradições explica bastante a superficialidade com que as coisas sérias são tratadas nesta nossa desamada, ou pelo menos mal amada Pátria.

Convidado deste artigo

Foto do autor José Renato Nalini
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José Renato Nalini
Reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo. Foto: Daniel Teixeira/Estadão
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