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Supremo julga se tem validade prova colhida pela Polícia em abordagem motivada pela cor da pele de 'suspeito'

Segundo item da pauta dos ministros do STF desta quarta, 1, é um habeas corpus da Defensoria Pública de São Paulo que se insurge contra buscas pessoais promovidas por policiais sob critério da 'filtragem racial'

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Por Pepita Ortega

O Supremo Tribunal Federal pode decidir nesta quarta, 1º, se são válidas ou não provas colhidas durante busca pessoal em razão de 'perfilamento racial', ou seja, durante abordagem policial 'motivada' pela cor da pele. O tema consta do segundo item da pauta da sessão plenária da Corte máxima desta tarde. Especialistas consideram o julgamento histórico e avaliam que a decisão do STF deve reverberar em todo o sistema penal e repercutir no Poder Legislativo.

O julgamento foi pautado há duas semanas. O relator, ministro Edson Fachin, pediu preferência no julgamento da ação por causa da 'acentuada repercussão social' do tema, 'especialmente no que se refere às relações raciais no Brasil'.

Supremo Tribunal Federal. FOTO: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO  

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Os ministros vão analisar um habeas corpus movido pela Defensoria Pública de São Paulo em benefício de um homem condenado a sete anos, 11 meses e 8 dias de reclusão, em regime fechado, por ter sido flagrado com 1,53 gramas de 'entorpecente para fins de tráfico'.

O caso chega ao Supremo depois de o Tribunal de Justiça de São Paulo negar recurso da defesa do réu e o STJ redimensionar sua pena para dois anos e 11 meses de reclusão em regime aberto.

Durante a análise do caso no STJ, os ministros da Sexta Turma da corte, por maioria, não reconheceram a ilegalidade da busca pessoal, 'à míngua de fundada suspeita'. Restou vencido o relator, ministro...., que entendeu que a cor da pele do réu foi o que, considerando o depoimento dos policiais responsáveis pelo flagrante, 'despertou a suspeita que justificou a busca pessoal'.

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Na ocasião, o ministro entendeu que a abordagem deveria ser considerada nula, 'diante da manifesta ausência de fundada suspeita de o paciente estar portando drogas no momento da abordagem, acarretando a ilicitude das provas obtidas por meio da busca pessoal'.

O magistrado defendeu a absolvição do investigado por 'ausência de provas da materialidade do delito'.

"Não se pode ter como elemento ensejador da fundada suspeita a convicção do agente policial despertada a partir da cor da pele, como descrito no Auto de Prisão em Flagrante constante dos autos, sob o risco de ratificação de condutas tirânicas violadoras de direitos e garantias individuais, a configurar tanto o abuso de poder, quanto o racismo", argumentou.

A Defensoria recorreu ao STF, argumentando que a abordagem ao réu é nula, 'diante da manifesta ausência de fundada suspeita legalmente válida para a revista pessoal'.

"A ilicitude da prova decorre da busca pessoal baseada em filtragem racial, pois a 'fundada suspeita' para a abordagem policial que deu azo a? revista corporal e a? apreensão da droga (1,53 grama) foi fundada essencialmente na cor da pele (negra) do suspeito, o que configura perfeito exemplo de perfilamento racial", argumentou a Defensoria.

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Durante a tramitação do processo no STF, Fachin negou liminar para absolver o investigado. Agora, a discussão do caso chega ao Supremo, com uma extensa lista de entidades 'amigas da Corte', que devem se pronunciar na sessão desta quarta-feira, 1.

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Entre elas estão: Conectas Direitos Humanos; o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania - ITTC; a Iniciativa Negra por Uma Nova Política Sobre Droga; o Justa; o Instituto de Defesa do Direito de Defesa Márcio Thomaz Bastos - IDDD; o Coalizão Negra por Direitos; o Instituto Referência Negra Peregum; a Educação e Cidadania de Afrodescendentes Carentes - Educafro Brasil; o Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras - Idafro; o Grupo de ADvogados pela Diversidade Sexual e de Gênero - GADvS e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM.

A criminalista Juliana Sanches, diretora nacional do IBCCRIM considera que é histórico que o Supremo julgue, pela primeira vez, a tese de que abordagens policiais fundamentadas por ações racistas devem ensejar a ilicitude do ato e de eventuais provas obtidas no contexto da abordagem.

"Eventual decisão favorável nesse julgamento é extremamente importante porque seria uma decisão que tensionaria o acolhimento de futuras teses defensivas nesse sentido. Vale destacar que essas abordagens racistas pautadas exclusivamente na cor/raça e/ou território que reside a pessoa abordada acontecem diariamente, sem nenhum outro elemento concreto que fundamente a decisão de abordagem. Pessoas negras, em razão da sua cor, são compulsoriamente consideradas suspeitas e as defesas há muitos anos apontam essas ilegalidades e o racismo que opera desde a abordagem policial até eventual sentença condenatória", pondera.

Na avaliação do juiz André Nicolitt, do Tribunal de Justiça do Rio e professor de Processo Penal da Universidade Federal Fluminense (UFF), a decisão do Supremo deve ter um impacto na atuação dos agentes do sistema penal, além de reverberar nos outros Poderes. Leia a seguir a entrevista com André Nicolitt:

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ESTADÃO: Qual a importância desse julgamento?

JUIZ ANDRÉ NICOLITT: Esse é um tema dos mais relevantes para as ciências criminais, especialmente no que interessa à justiça criminal que atinge a comunidade negra e periférica. Porque quem são os alvos dessas abordagens policiais? Como o Emicida diz, 'existe pela alva e pele alvo.' Essas abordagens policiais são esmagadoramente realizadas em corpos negros. Muito difícil um jovem loiro do Leblon tomar uma dura. Isso é fato. A questão é racial.

Nós vivemos num País estruturado no racismo e temos uma legislação que não dá um tratamento devido a essa questão. Nós não temos no Código de Processo Penal uma regência sobre os requisitos objetivos para uma abordagem policial. Nós temos, vagamente, um dispositivo que fala que as abordagens no âmbito da busca e apreensão - na investigação e não no policiamento preventivo - devem ser baseadas em fundadas suspeitas, um conceito vago e indeterminado. Na legislação só existe essa expressão no Código de Processo Penal, que trata de uma abordagem feita no âmbito da investigação.

ESTADÃO: Não existe uma regra para as abordagens?

ANDRÉ NICOLITT: O grande problema são as abordagens, que geram prisões, no âmbito do policiamento ostensivo preventivo, que a PM faz no dia a dia. Não tem regra que regulamente isso. E o que a gente vê é todo tipo de racismo, violência e arbitrariedade. Um exemplo. A condução coercitiva foi prontamente rechaçada pelo STF, que a declarou inconstitucional. Logo depois, a lei de abuso de autoridade tornou isso crime no Brasil. E porquê essa reação, tanto dos tribunais quanto do Legislativo, tão rápida em relação a esse instrumento violento e arbitrário? Porque as pessoas que eram alvo, via de regra, tinham a pele alva - ou seja, eram brancas, tinham visibilidade social, seja pela classe, pela cor, ou profissão. Então houve uma reação do ordenamento jurídico, corretíssima.

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A pergunta é: porque algo que atinge um número muito maior de pessoas e existe na nossa prática judicial e policial há muito tempo só agora chega ao STF? A abordagem policial arbitrária que atinge o cotidiano de pessoas periféricas pretas. Exatamente por conta disso, essas pessoas nunca tiveram a proteção do ordenamento jurídico. Sempre tiveram a pele alvo.

ESTADÃO: O que esperar do Supremo?

ANDRÉ NICOLITT: Em uma nova atmosfera de País, em que se pensa em proteger todas pessoas, inclusive aquelas cujos ancestrais foram escravizados, rediscutir esse tema e colocar critérios rígidos para eles é algo fundamental. Esse debate nas cortes americanas se dá desde a década de 1960 e, no Brasil, a gente coleciona menos de 10 acórdãos que discutem isso. Há uma total invisibilidade para um verdadeiro câncer da nossa sociedade que são abordagens policiais.

Idosas em Guarapari, mães em Minas Gerais, jovens do Rio de Janeiro, ciclistas no planalto central. O cardápio de pessoas negras submetidas a essa prática truculenta é o mais vasto possível - atinge todos os sexos, idades e classes. Mesmo pessoas pretas que tenham status econômico e social são alvo. Eu mesmo já fui.

Então, acho que o Supremo tem um papel hoje fundamental de dizer o quanto está mobilizado e determinado a combater o racismo estrutural e institucional dando contornos objetivos, critérios rígidos e rechaçando essas formas de abordagens policiais fundadas no racismo.

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ESTADÃO: Qual a possível repercussão dessa decisão?

ANDRÉ NICOLITT: Acho que uma decisão do STF que declare, na esteira de muitos julgados da corte americana, a ilicitude da prova obtida através de abordagem policial sem critério ou fundada em critério racista é extremamente pedagógica, especialmente para a polícia. Todo o sistema vai ser pautado por isso. Como vai prender? Vai chegar lá e o delegado não vai homologar. Se homologar, o Ministério Público não vai denunciar. Se denunciar, o juiz não vai receber.

Se receber, o tribunal vai reclamar. E quando chegar no Supremo? Ninguém vai querer trabalhar partindo de um pressuposto que o STF já declarou nulo. Os agentes do sistema penal, desde a polícia até o juiz, vão começar a se adequar ao novo entendimento do Supremo. E também será um recado para o Legislativo regulamentar isso. Vou dar um exemplo, o STF disse que injúria racial é racismo. A Câmara aprovou lei que ratifica esse conceito. Muitas das decisões que começam no Supremo terminam no Parlamento. Foi assim também na lei de crimes hediondos. A gente acredita, obviamente, que a postura, que eu quero crer, antirracista do Supremo possa repercutir em outras esferas dos Poderes, o Legislativo e o Executivo, destacadamente as polícias.

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