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Opinião|Têmis e a venda transparente

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Atualização:

Têmis, filha de Urano e Geia, é uma das Titânidas. É considerada deusa da justiça divina, a segunda esposa de Zeus, mãe das Horas e das três Moiras personificadas. Simboliza a arte e a virtude da Justiça. Costuma-se representá-la com venda nos olhos. Pois a Justiça não pode enxergar as partes, mas tem de decidir sem saber quem são.

A Justiça representa um conjunto de critérios ideais que devem inspirar a boa condução e o desenvolvimento ordenado da coisa pública. Há ceticismo quanto à objetividade de tais critérios, elaborados em edificantes discursos, mas de quase impossível aplicação prática. Tem-se a sensação de que as partes abonadas têm por si os melhores talentos nesta República da Hermenêutica. Isso leva a uma generalizada descrença na legitimidade do justo concreto, eis que alguns merecem tratamento privilegiado.

Escultura 'A Justiça', em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF). Obra de Alfredo Ceschiatti retrata Têmis Foto: Dida Sampaio/Estadão

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Há um sentimento moral em relação à Justiça, aspiração dos indivíduos e da sociedade como um todo. Na vertente procedimental, alguns dos critérios ostentam inequívoca objetividade: a exigência da imparcialidade, a proibição de julgar em causa própria e observância do contraditório. Ou seja: em qualquer litígio, as duas partes litigantes têm de ser igualmente ouvidas.

Apesar da polissemia, a Justiça não pode ser considerada mera virtude. É um fundamento da sociedade. Na filosofia kantiana, redimensionou-se o conceito. A Justiça é um dever absoluto que consiste em tratar cada ser humano com respeito, isto é, como um fim em si mesmo, e não como instrumento para obtenção de algo.

O equipamento estatal denominado “Justiça” já mereceu maior consideração e respeito por parte da sociedade à qual é preordenado a servir. Para isso contribui também certa flexibilidade no trato de questões delicadas, como a ética da Magistratura.

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Sempre fui defensor da Suprema Corte, que não precisava de defensores há algumas décadas. A partir da Constituição de 1988, ela se viu chamada a intervir em questões polêmicas e aparentemente mais políticas do que jurídicas. A tanto contribuiu o conteúdo excessivo, além de exuberante, de temas prosaicos incluídos na lei fundamental. Tudo teve lugar na “Constituição Panaceia”, a segunda mais alentada em todo o planeta. E o fetiche normativo tupiniquim prossegue a propor emendas e acréscimos. Quantas PECs – Propostas de Emenda à Constituição encontram-se em curso pelo Congresso?

A complexidade de um Parlamento multifacetado em dezenas de partidos gera certa inibição ou incapacidade de se resolver nele tudo aquilo que não necessitaria da intervenção judicial, já constasse em lei. E, lamentavelmente, o STF brasileiro não é uma Corte Constitucional, mas verdadeira quarta instância, do surreal sistema de quatro graus de jurisdição aqui instaurado. Algo sem similar no mundo civilizado.

Sempre tentei enfatizar que o STF não chama novos processos para si. Ele é chamado a decidir. E não pode se recusar a fazê-lo, ao contrário da boa prática norte-americana, que nos forneceu o modelo quando do golpe republicano de 1889.

Todavia, já não me sinto confortável ao assumir a condição de defensor, quando assisto à repercussão causada por viagem de “estudos” com a participação de Ministros das Cortes Superiores, para a qual se vedou a presença de jornalistas. Essa discussão é recorrente. Por que tanto “turismo jurisdicional”? Quantas as viagens ao exterior foram feitas, com esse intuito, nos últimos anos?

Feriu-me, como cidadão que integrou durante meio século as hostes da Justiça bandeirante, o tom dos comentários da mídia, com viralização nas redes sociais, a evidenciar a indignação de tantos, diante do alegado patrocínio e da convivência promíscua entre jurisdicionados e julgadores. Qual a justificativa para uma reunião em Londres, entre magistrados, políticos e pretensas partes litigantes?

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Problemas brasileiros têm de ser tratados nesta terra campeã em desigualdade, onde trinta e três milhões de irmãos passam fome todos os dias e outros setenta milhões padecem de crônica insegurança alimentar.

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Um país que não consegue implementar a imprescindível política de saneamento básico precisa de uma Suprema Corte atenta às urgências do povo, apta a julgar em dia, com a dispensa do número crescente de magistrados de primeira instância chamados a atuar nos gabinetes de Brasília.

O convívio no exterior com empresas que têm causas em curso, desequilibra a igualdade entre as partes. É por isso que a venda colocada sobre os olhos de Têmis agora é transparente, o que pode vir a ser negado, mas ao menos sugere uma parcialidade intolerável.

É preciso reler, todos os dias, o Código de Ética da Magistratura Nacional. Mesmo por parte daqueles que podem revogá-lo ou invalidá-lo pelo desuso.

Convidado deste artigo

Foto do autor José Renato Nalini
José Renato Nalinisaiba mais

José Renato Nalini
Reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo. Foto: Iara Morselli/Estadão
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