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Clã Tatto entra na mira da polícia e do Coaf por suspeita de rachadinha de petistas na Câmara de SP

Receita aponta indícios de lavagem de dinheiro em contas de dois membros da família, que negam irregularidades; funcionários ouvidos por investigadores confirmam saques

Foto do author Luiz Vassallo
Foto do author Marcelo Godoy
Por Luiz Vassallo e Marcelo Godoy
Atualização:

Saques, depósitos fracionados e movimentações em espécie recorrentes de assessores e integrantes do clã petista dos Tattos em São Paulo chamaram a atenção das autoridades financeiras e policiais. A família que domina redutos eleitorais na zona sul da capital, com cinco políticos com cargos eletivos na Câmara Municipal, Assembleia Legislativa e Congresso Nacional, foi alvo de devassa do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). As transações consideradas atípicas levantam suspeita de rachadinha cobrada de funcionários de confiança da família há três décadas.

Os relatórios foram enviados às Polícias Federal e Civil de São Paulo e aos Ministérios Públicos Estadual e Federal no Estado, em junho de 2020. Os documentos – que permaneceram em sigilo e foram obtidos pelo Estadão – mostram às autoridades que pelo menos dois membros do clã, o vereador Jair Tatto (PT) e o deputado estadual Ênio Tatto (PT), apresentam movimentações bancárias acima de seus vencimentos declarados à Receita Federal.

Jair Tatto é vereador em São Paulo pelo PT Foto: André Bueno/Estadão

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Os documentos relacionam ainda outro parlamentar da família – o vereador Arselino Tatto (PT) – no caso. No entanto, o Coaf apenas detectou depósitos menores na conta-corrente que não indicam suspeitas de crimes financeiros.

A Divisão de Investigações sobre Crimes contra a Administração (Dicca), da Polícia Civil, investiga a suspeita da prática de desvios de salário de funcionários. Pelo menos três assessores admitiram em depoimentos à polícia movimentações em dinheiro vivo e uma ex-servidora afirmou ter devolvido parte dos seus vencimentos na Câmara Municipal. Procurados pelo Estadão, os dois integrantes da família investigados – Jair e Ênio – negaram qualquer tipo de irregularidade, bem como seus assessores.

Com salário mensal de R$ 25 mil e outros R$ 6 mil de aposentadoria, Ênio movimentou R$ 2,2 milhões entre 2018 e 2019. O parlamentar é um dos contadores da família, que tem pelo menos três escritórios de contabilidade na zona sul. O Coaf não dá detalhes sobre os valores recebidos pelo deputado estadual que estariam acima dos seus rendimentos e que indicariam transações atípicas. Não há informações sobre investigação na polícia ou no Ministério Público sobre o deputado estadual, que tem foro privilegiado.

No passado, uma das empresas de contabilidade de Ênio foi citada na Operação Lava Jato como destinatária de R$ 1,1 milhão da JD Assessoria, empresa do ex-ministro José Dirceu, suspeita de lavagem de dinheiro de propinas em esquemas de corrupção na Petrobras. Ênio, no entanto, nunca foi denunciado ao lado de Dirceu, que, por sua vez, chegou a ser condenado.

Mais jovem do clã, Jair recebeu créditos em conta que alcançaram R$ 339 mil entre 2017 e 2018, apesar de seu salário, no mesmo período, somado, ter sido de R$ 249 mil. Ele recebeu R$ 76,6 mil em 16 depósitos em espécie, prática que é vista por investigadores como uma burla ao sistema de alerta de bancos para transações atípicas, ou seja, acima de R$ 50 mil. Fez saques “pulverizados” de R$ 146 mil, mas o número dessas transações não foi informado pelo Coaf à polícia.

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Em posse do relatório do Coaf, a Polícia Civil passou a chamar assessores de Jair para prestar depoimentos. Muitos deles têm passagem em gabinetes ou ligações com outros membros do clã. Por ser vereador, Jair é o único sem foro privilegiado. A suspeita apurada de rachadinha implica os possíveis crimes de peculato e lavagem de dinheiro.

Depoimentos aumentam suspeitas

No fim de 2020, a ex-servidora Stefany Lima afirmou em três oportunidades que devolvia entre R$ 4,5 mil e R$ 5 mil mensalmente do seu salário de R$ 7,6 mil. A Polícia Civil tem em mãos comprovantes de saques em espécie de Stefany. Ela contou ainda que começou a trabalhar para os Tattos em 2015 como estagiária, em razão da indicação de uma amiga que trabalhava em um salão de cabeleireiro. Ganhava então R$ 685.

Além de Jair, ela assessorou o deputado federal Nilto Tatto (PT-SP), que não é citado no relatório de inteligência. Em seu primeiro depoimento, datado de 17 de novembro de 2020, Stefany contou que entregava o dinheiro ao vereador. Depois, em novo depoimento, em 2 de dezembro de 2020, mudou sua versão e afirmou que os valores ficavam com o chefe de gabinete do vereador, Everton Soares Ferreira.

Deputado estadual Ênio Tatto (PT) durante sessão na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo Foto: Gabriela Biló/Estadão

Todos os outros servidores negaram a devolução de salários para o vereador, mas acabaram admitindo à Polícia Civil movimentações em dinheiro vivo e se negaram a abrir mão de seus sigilos bancários – o que despertou mais suspeitas nos investigadores. Homem de confiança dos Tattos desde o início dos anos 2000, Ferreira conheceu Jair depois de ter trabalhado para uma das campanhas de Ênio, em 2002.

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Ferreira negou com veemência a existência de esquemas de desvio de salário, mas reconheceu que “realiza saques entre R$ 5 mil e R$ 6 mil por mês, para suas despesas pessoais, tais como táxi, dízimo, jogos de loteria e lazer”.

Alayde Caetana das Graças é uma das diversas líderes comunitárias que operam como braços dos Tattos na zona sul. O clã tem o costume de empregar nos gabinetes líderes de bairro e de associações comunitárias. Como mostrou o Estadão, os políticos chegam a enviar emendas para as entidades e até mesmo ajudam a abrir o registro delas na Receita. Alayde afirmou à polícia que, entre 2013 e 2017, mesmo sem ser nomeada na Câmara Municipal, assessorou “informalmente” Jair, e recebia R$ 3 mil mensais em uma conta aberta com o chefe de gabinete do vereador.

Outro líder comunitário, José Claudio da Penha, relatou que conhece os Tattos há 30 anos e que atua em campanhas do clã há mais de duas décadas, quando ajudou Arselino em uma candidatura à Câmara Municipal. Ele também passou pelo gabinete de Ênio. Relatou ter trabalhado como motorista de Jair Tatto com salário de R$ 4,5 mil. Segundo o relatório do Coaf, boa parte dos depósitos na conta do vereador foi feita por Penha. Ele afirmou que, a cada duas semanas, o parlamentar “entregava entre R$ 2 mil e R$ 3 mil em espécie, para que depositasse” na conta do petista.

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Família tem patrimônio milionário

No ano passado, uma reportagem do Estadão mostrou que os Tattos haviam alcançado um patrimônio de pelo menos R$ 25 milhões. O cálculo é conservador, e baseado em valores venais de imóveis – alguns deles há mais de duas décadas sem sofrer alterações. Boa parte das propriedades é formada de casas construídas às margens da Represa do Guarapiranga, em terrenos adquiridos ainda nos anos 1980.

A família foi uma das fundadoras do PT. Formados em Contabilidade, os Tattos foram responsáveis por registrar movimentos sociais, sindicatos e os primeiros diretórios do partido em São Paulo. Ocuparam cargos em secretarias e subprefeituras nas gestões petistas de Luiza Erundina, nos anos 1990, Marta Suplicy, no início dos anos 2000, e de Fernando Haddad.

Atualmente, o clã tem cinco representantes no Legislativo. Jilmar e Nilto são deputados federais. Ênio tem mandato na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Arselino e Jair são vereadores na capital paulista.

Jair dá resposta contraditória

O vereador Jair Tatto enviou nota ao Estadão na qual afirma não ter conhecimento oficial da investigação. No inquérito, no entanto, consta procuração dada pelo vereador ao seu advogado, Claudio de Albuquerque Grandmaison, para representá-lo no caso em 8 de setembro de 2020.

Jair soube do inquérito quando foi pedir uma certidão à Justiça Eleitoral sobre sua situação judicial. Grandmaison foi assessor de Ênio na Assembleia. “Até o momento não temos conhecimento oficial de tal investigação, uma vez que o vereador nem sequer foi comunicado pelas autoridades para qualquer esclarecimento, desconhecendo assim qualquer eventual depoimento ou detalhes da suposta apuração”, afirma, em nota, a assessoria do vereador.

A nota diz ainda que o vereador declara “todos os seus rendimentos e respectivas origens à Receita Federal, nos termos da lei” e afirma estar “à disposição do órgão competente para responder às indagações que eventualmente lhe forem dirigidas”. De acordo com a nota, “a contratação e a atuação de servidores sempre foram pautadas pela ética, transparência e estrita legalidade”.

Ênio Tatto respondeu que as apurações da Polícia Civil se tratam de “notícias ou informações passadas e antigas, que já foram explicadas e as dúvidas sanadas”. Arselino não quis se manifestar.

Ferreira, chefe de gabinete de Jair, diz por meio de nota que “já prestou os esclarecimentos necessários à Polícia Civil de São Paulo e reitera que jamais houve tal exigência no gabinete do vereador”. O assessor conclui sua manifestação afirmando: “Ressalta-se que o procedimento contém dados pessoais e financeiros cujo sigilo é constitucionalmente garantido, de modo que não cabe a revelação à imprensa de quaisquer dessas informações”.

A defesa de Stefany, por meio de nota, afirma que “ela foi ouvida em investigação relacionada à época em que foi assessora em gabinete de vereador de São Paulo”. E completa: “Mais informações não podem ser reveladas por se tratar de procedimento sigiloso. Informo somente que, em depoimento, a sra. Stefany afirmou que nunca lhe foi exigido que devolvesse parte de seu salário.”

A nota, aparentemente, indica um recuo do que a assessora disse à polícia em três oportunidades. O Estadão não conseguiu localizar os demais citados na investigação.